Véu

de Ana Rita Garcia

 

Não queria usar véu. Não e não. Considerava-o coisa antiga, descabida e de fraca funcionalidade. Gostava pouco de prender coisas à cabeça, a fazer peso e comichão, a desgastar as ideias. Era uma mulher moderna e, assim sendo, tal artefacto estava fora de questão.

Sem se aperceber, deram-lhe a volta. Talvez tenham sido as madrinhas, as sobrinhas ou as tias-avós ― que eram mais tias do que avós ―, ou teriam sido as vizinhas?

Alguém a convenceu. Não se lembrava de quem.

No seu dia, lá lhe espetaram o véu, enterrando-o fundo no penteado complicado que demorara tantas horas a compor. Ancoraram-no com ganchos, elásticos e alfinetes. Deixaram escapar a piada: dali, não sairia! E que linda que estava… Coisa parva ter julgado que não o queria. De tão comprido que era, enrolava-se aos seus pés. Assemelhava-se a um pedestal, e ela a uma qualquer santa imaculada.

Chegada à igreja, saiu do carro atrapalhada. Tanto tecido ― saiote, saias e véu ― era difícil de transportar. Porém, determinada que estava, quis empreender o desafio a solo. Ordenou às meninas e às damas que seguissem a marcha. Não demoraria a alcançá-las.

Já se ouviam os sinos, os órgãos e o coro.

Já ela transpunha a porta da igreja.

Já choramingavam as madrinhas, as sobrinhas, as tias-avós e as vizinhas.

Então, inoportunamente, a porta do carro fechou-se, com parte do véu ainda no interior… E tão bem que estava ancorado na sua cabeça. Arrancou o veículo e arrancou a noiva, ao puxão e ao arrasto, primeiro pelo adro e depois pelo asfalto, com cabeça a bater como batem as latas atrás dos carros dos recém-casados — mas sem barulho, que os gritos se extinguiram depressa.

Antes de se ir, lembrou-se — não foram as madrinhas, as sobrinhas, as tias-avós, nem tampouco as vizinhas, que a tinham convencido a adoptar tal acessório. Tinha sido uma velha corcunda e amarrotada, envolta em bruma e roupas escuras. Lembrou-se porque a viu, enquanto era levada, a gargalhar à porta da igreja.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira-mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. Formou-se em Arquitetura, escondendo a paixão pelas Letras até as histórias começarem a escorrer-lhe pelos dedos. Integrou as antologias In/Sanidade e Dúzia (Editorial Divergência), publicou o conto «Colecionadora» no sexto número da revista literária Palavrar e tem vários contos publicados na página oficial da Fábrica do Terror. Em 2024, foi vencedora do Prémio Ataegina para Conto Original, com Os Acasos Improváveis de Mister Rayleigh.

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