Carrasco

de Maria Duran

 

Os tempos estão tão maus. Até trabalhadores essenciais do setor público, como eu e os meus colegas, começam a sentir dificuldades ao fim do mês. Entrei para a profissão pela promessa de seguro de saúde, férias asseguradas, pensão, uma reforma antecipada. Onde está essa bonança prometida? Agora, nem o reparo dos instrumentos está garantido, só para que os administradores possam poupar na conta do amolador.

Não estava a contar chegar a esta idade com arrependimentos. Por este andar, começo a soar como o Rogério, que decidiu tornar-se monge, e vegetariano também, ainda por cima. Duplicaram-me os turnos, depois de ele se demitir, até conseguirmos uma estagiária com espinha dorsal. E também essa não ficou muito tempo. Agora, trabalha como freelancer para grandes empresas. Quem é que já ouviu falar numa coisa dessas, numa profissão que devia ser serviço público e democrático? 

Queria muito pensar que deixei o mundo melhor do que o encontrei. O idealismo, contudo, não paga as propinas do meu mais novo. Gosto do trabalho, mas ninguém trabalha só porque gosta, não é verdade? 


SOBRE A AUTORA

Maria Duran

Maria Duran é investigadora e escritora. Nascida em 1997, pesquisa artistas pouco conhecidos do século XIX de dia, e à noite escreve sobre outro tipo de fantasmas. Foi finalista do Festival de Poesia de Lisboa de 2024 e tem apresentado poesia, colagem, fotografia e prosa um pouco por todo o mundo. O seu primeiro livro será publicado pela Editora Urutau.

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