Agora, Sparagmos
de Inês B. Lourenço
Dou-te a mão, e estás linda. Olho para o rio que corre ante nós, e estás linda. Linda, sossegada. Linda, posta em sossego. Sinto a tua mão fria e gosto do arrepio que me provoca. Acaricio-te o anel que, em tempos, te ofereci. Os teus cabelos negros emolduram o teu esguio pescoço e, neste momento, sinto-me feliz. Inclinas-te para mim e, num doce murmúrio, sussurras-me um Amo-te muito cândido. Agora, sim, podemos amar-nos tranquilamente, sem paixões desmedidas nem violências desnecessárias. Arranco uma flor da relva miúda ao nosso lado e ofereço-ta, coloco-ta no colo e lembro-me daquelas aulas de Literatura às quais não prestávamos atenção; bastava olhar para trás e os meus olhos encontrarem os teus para esquecermos a Lídia, o Ricardo Reis e os restantes escreventes mentecaptos e zarolhos que à noite gostávamos de recitar um ao outro, deitados na pequena cama do teu apartamento arrendado.
Senta-te comigo à beira rio/ Os teus olhos, agora, enxutos/ Ensina às ervinhas/ O nome que no peito, agora, tens gravado/ Minha pagã triste e com flores no regaço, deturpava eu ao teu ouvido, depois de chorares as sevícias que te faziam. Esboçavas um sorriso triste e dizias para me calar com o agora, que não era palavra suficientemente estética para se repetir, muito menos num poema.
Debruças-te e mordes-me as costas da mão esquerda. Não a retiro. Incentivo-te a continuares. Morde. Sinto os teus dentes incisivos a marcarem território na delicada fáscia muscular povoada de tendões. Os teus caninos arrancam-me a pele. Solta-se um fio de sangue da minha mão e ocorrem-me aqueles entediantes poemas seiscentistas dedicados a uma qualquer queimadura de mão que dissecavas afincadamente. Continua, continua. Comunhão total: almas e corpos. Este é o meu corpo e este é o meu sangue. Comunhão espiritual pela carne. Continuas. Gemo. Paro-te. Coloco a mão não massacrada na tua fronte e, cuidadosamente, obrigo-te a largares a outra. Resistes um pouco, mas, apesar de tudo, não passas de uma fraca dama delicada. Beijo-te a boca cruenta e aspiro o teu hálito agora pútrido. Direciono-te para o meu peito: quero que me mordas aí. Morde. Lembra-te das aulas matutinas de Anatomia para as quais corrias atrasada, sitibunda e esfomeada. Morde, morde a porção esternocostal do músculo peitoral maior esquerdo, encaminha-te para o músculo serrátil. Liberto-te as mãos. Rompes-me a pele do peito com as tuas primorosas unhas de gel, e uma dor lancinante percorre-me o corpo. Dilaceras-me os ligamentos costais, sofro um espasmo intenso. Relaxo e, nesse momento, amo-te imenso, como nunca te amei.
Olhas-me. Abres caminho por entre as minhas costelas. Desbravas o meu corpo como outrora desbravei o teu. Não grito, sorrio-te com um trejeito de mártir. Arrancas lentamente o meu coração da caixa torácica. Respiras ofegante, e eu também. Sinto o meu coração bater nas tuas mãos e ainda tenho consciência para constatar que a sua batida sincronizou com o ritmo lúbrico do teu baixo ventre. Agora, eu e tu, degradados, iguais. O que em ti é fraqueza, em mim, será força.
SOBRE A AUTORA
Inês B. Lourenço
Inês B. Lourenço nasceu para lá do Marão, mas não manda nada. O seu ano de nascimento é nome de filme, mas é avessa a qualquer odisseia espacial. Estudou Medicina, mas não era bem a cena dela. Tentou conciliar a pena com o bisturi, mas não é Camões para numa mão ter a lança e noutra a pena. É uma anarquista, mas é muito bem-comportada. Acredita que a escrita de ficção salva, mas não acredita na ficção autobiográfica. Promete que conhece outros conectores discursivos além de «mas».