Relicário

De Inês Videira

 

As escadas de pedra de Ançã encaminhavam Sofia para as catacumbas frias da igreja da sua paróquia. A tia seguia uns degraus abaixo, imune à nuvem de bafio e pó que adensava o ar.

Havia apenas um postigo, por onde se viam os pés das pessoas que passavam lá fora, e as paredes estavam forradas com pequenos relicários de um dourado gasto, ossos emoldurados de santos que Sofia desconhecia. E, ao fundo, em exposição numa vitrina, estava a peça mais importante de toda a coleção.

Corpo incorrupto, o caraças! pensou Sofia, franzindo o nariz. Milagrosa ou não, aquilo era uma carcaça. E o fulano até podia ter sido santo, mas há muitos, muitos séculos. Aquilo que tinha sido pele já não era mais do que algo seco, escuro e empedernido. Nem os véus e adornos de brocado vermelho e rendas imaculadas o tornavam menos desagradável à vista.

— Vai ver e diz-me se estou doida. — A tia empurrou-a até à vitrina.

Sofia achava estranha a posição da múmia, de pé, presa por arames. Não lhe parecia muito digno de um santo ter camarões prateados enroscados nos ossos secos, para o segurarem a um caixão vertical, mas ela não entendia nada de igreja. Estava ali como representante máxima da comunidade dos céticos e ateus, a segunda melhor instituição para confirmar um milagre, logo a seguir ao Vaticano. Por isso, puxou um pequeno escadote que havia ali ao lado e subiu dois degraus, para ficar cara a cara com a relíquia.

A tia benzeu-se.

— Tem cuidado. Essa vitrina é nova. Na semana passada, a Lurdes caiu do escadote e partiu a outra. Cortou-se toda, teve de levar uma data de pontos. Para trocar o vidro, foi uma fortuna. — Sofia revirou os olhos. — E não me faças essa cara, quero ver de onde é que vamos tirar o dinheiro para mandar enfeitar os andores este ano! 

— E foi depois de trocarem o vidro que… — Olhou para a placa desgastada com o nome do santo: Santo Elias das Astúrias. — …o Elizinho ficou diferente?

— Respeito, cachopa!

— Ele não se importa. Como estamos assim, próximos um do outro, já somos amigos. — A tia enrugou a testa, quase fazendo os pequenos olhos desaparecer entre as gelhas do rosto. — Sabes que, se o vidro é novo, podes estar a ver diferenças por causa do reflexo. 

— Olha bem!

Sofia respirou fundo e fez a vontade à tia. Aproximou-se até o nariz tocar no vidro, criando uma pequena auréola embaciada que limpou com a manga. Acendeu a lanterna do telemóvel e apontou-a à boca semiaberta do santo.

A sua expressão caiu. Desequilibrou-se no escadote, mas a tia amparou-a.

Aquilo tinha língua.

— Eu não disse que estava estranho? 

Sofia olhou para a tia, incrédula. A senhora rejubilava como se aquele pequeno milagre fosse uma coisa boa, sem ver a aberração daquela língua a mexer-se, um movimento compassado de vai-e-vem, semelhante ao de um bebé que procura a mama da mãe.

Desceu um degrau do escadote. E deixou a comunidade dos céticos e ateus.

Desceu o segundo. E o cérebro tentou encontrar uma explicação.

Desceu até sentir o chão a estender-se de novo debaixo dos pés. E ouviu-se um estalido.

A tia estremeceu ao ver a cabeça da relíquia pender, com o arame partido atrás.

— Que chatice! Vamos ter de chamar o Sr. Padre para trocar isto. — Tirou uma chave do bolso e inseriu-a na fechadura da vitrina.

— Não! — Outro estalo. Agora, era um braço que estava livre. A voz de Sofia saía-lhe pequena, como se a noz que sentia no fundo da garganta a impedisse de a projetar. — Não abras isso.

— Essa agora! Vou ver se consigo juntar os arames até o Sr. Padre os trocar por uns novos. — Sofia segurou a mão da idosa, que descartou, com uma sacudidela, a preocupação da jovem. — Não me digas que te faz impressão? É um santo, uma coisa de Deus. Não há que ter nojo!

Outro estalo, que a tia não ouviu, porque se misturou com o som de metal a raspar em metal. Depois, o clique da fechadura a ser aberta.

A porta de vidro abriu para trás sem som e sem resistência, nova e bem oleada. Sofia podia jurar que, conforme a tia se aproximava do santo, as suas pálpebras fechadas e ressequidas estremeciam.

— Ai, chiça! — A tia levou a mão à boca. Tinha-se picado no arame partido.

— Vá, vamos embora. Tens de desinfetar isso. 

— Para lá com as mariquices! O que é santo não nos adoece. — Apertou o dedo um pouco, fazendo sair pela pele uma pequena missanga escarlate. — Vês? Isto nem para medir a diabetes dava.

Mas foi o suficiente.

Os restantes arames partiram.

Uma mão fina e escurecida agarrou com força o pulso da idosa, e levou o dedo furado à boca, sorvendo a gota de sangue com aquela língua meio morta.

A relíquia atirou a velha senhora, de olhos esbugalhados e sem voz, contra a porta aberta da vitrina, que partiu de imediato. A cascata de vidros deixou um caminho de cortes no rosto da senhora, que a criatura lambeu, até que os movimentos entorpecidos por séculos começaram a ficar mais fluídos.

Sofia pegou no escadote, pronta a arremessá-lo contra aquela coisa, mas uma mão deteve-a. Aquilo abriu as pálpebras, revelando olhos brancos que se assemelhavam aos de um peixe morto, e que iam raiando de vermelho, com pequenos capilares do sangue que pedira emprestado à sua vítima.

Depois, os dentes cresceram. E enterraram-se no pescoço da velha.

Sofia deu meia-volta para subir as escadas de pedra e pedir ajuda, mas logo ficou de novo frente a frente com a coisa, que se tinha atravessado à frente dela com uma velocidade desumana.

Foi agarrada pelo pescoço e deixou, involuntariamente, cair a cabeça para trás. Olhou para o postigo. Àquela hora, não havia pés a passar pela calçada.

Estranho pensamento para ter quando se morre. E deixou-se ir.

SOBRE O AUTOR

Inês Videira

Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.

Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.


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