Barco

De J. P. Félix da Costa

 

Daqui, da torre do farol, é possível ver toda a ilha. Ao fundo, na enseada, repousa o barco. Quando chegou, a velha que recolhia sargaço na praia parou a sua faina. Enquanto a quilha quebrava as ondas, numa aproximação lenta, ela ergueu o braço e apontou na direção dele. «O barco que traz a morte», gritou. O medo agarrou-se a quem a ouviu. A velha nunca se enganava, e, mais uma vez, o futuro não a contradisse. Pouco tempo depois, os corpos começaram a ser encontrados. O velho pastor, que veio à aldeia vender ovelhas, já não regressou ao monte. As lavadeiras deixaram de ir ao tanque, quando uma lá foi encontrada a flutuar, de rosto para baixo. A morte passava silenciosa, sem deixar indícios da sua causa. 

O medo de ser o próximo fez de todos cautelosos. Trancavam portas e nunca andavam sós. Mas quando o primeiro tombou em plena praça, no meio da multidão, o desespero floresceu. Não tardou a converter-se em raiva, e esta a espalhar-se como um rastilho.

Subiram ao farol e arrastaram o faroleiro até ao adro da igreja. Fora ele quem guiara o barco até à enseda. Fora ele quem convidara a morte a entrar. 

De nada lhe valeu negar as acusações. Ele guiava todos os barcos. Era culpado. As vozes subiram de tom, os ânimos exaltaram-se. O faroleiro foi linchado pelos que exigiam justiça, vingança, retribuição. Penduraram-no de cabeça para baixo no mastro de ensebar das festas das colheitas.

Mas a vingança apenas trouxe discórdia, o que gerou mais ódio e confrontos. E a morte contemplou os homens a fazerem o trabalho dela.

 

*

 

Aqui, do topo, é possível ver toda a ilha. Do outro lado, a aldeia. Os corpos espalhados jazem imóveis. Nenhum dos habitantes ficou de pé. Resta-me apenas descer os 283 degraus e a colina que leva à enseada. Está na hora de regressar ao barco.


SOBRE O AUTOR

J. P. Félix da Costa

Apaixonado por livros desde o primeiro dia em que um lhe caiu nas mãos, J. P. (João Pedro) Félix da Costa tem nutrido o gosto pela escrita. Pelas circunstâncias da vida, esse caminho foi ficando perdido em fragmentos de textos e histórias que guarda para mais tarde terminar. Mais de quinze anos volvidos sobre a publicação de um livro juvenil, procura agora recuperar o tempo perdido e entregar-se às Letras para fazer o que mais gosta, dar vida aos mundos e histórias que lhe fervilham na imaginação, desde histórias para crianças a histórias do mais profundo horror.

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