5.º Mandamento

de Liliana Duarte Pereira

 

Não me lembro de viver sem ela, talvez porque sempre esteve agarrada à minha pele. É crónica, não tem cura. As consultas são obrigatórias, a apresentação semanal da minha mente. Dia marcado para fazer a prova de vida. A medicação e o acompanhamento são os cuidados paliativos para o meu cérebro.

Pessoas como eu são vistas como ingratas. Temos tudo, somos saudáveis, só é pena termos demasiado tempo livre e minhocas na cabeça. Mas não são minhocas; são larvas que degustam com gula os meus miolos. Que me baralham. Que me causam uma dor permanente.

Não sei o que é o silêncio, nunca o conheci. Ouço sem cessar a recomendação de Deus: «não matarás, nem causarás outro dano, no corpo ou na alma, a ti mesmo ou ao próximo». Sou livre para estancar o sofrimento de um animal de estimação, de entregar o meu carro para abate, de me desfazer de bens que deixaram de ser funcionais, mas sou forçada a viver assim, em agonia.

Dispus-me a transpor aqueles portões, deixando para trás o mundo como o conheço. Disse aos meus que ia para um retiro em parte incerta, o que não era de todo mentira. Lugar de paz, imune às regras da ilegalidade, reservado dos olhares que não compreendem a provação. Porque ela é terminal, como um cancro em estádio IV. Peço, assim, dignidade e misericórdia divina, na escolha da remissão.

 

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.