A Árvore Queimada

de Leonor Hungria

 

Esta foi em tempos a minha mãe. Agora, tudo o que dela se consegue distinguir é um coração queimado e sangrante. Mas estou a adiantar-me à história.

Talvez deva começar por me apresentar. Sou a Helena e vivo numa casa de campo sossegada, longe de tudo. É apenas uma casa pequena e corriqueira, que se ergue, torta, na charneca vasta, desolada e batida pelo vento. Aqui, vivia com a Mãe. O meu pai tinha partido há muito tempo. Um dia, lançou a sua sacola sobre o ombro e marchou para longe. Sem um «adeus» ou «com a vossa licença», sem qualquer explicação. Depois disso, várias coisas estranhas começaram a acontecer. Os poucos pertences do meu pai saíam dos seus lugares. Num momento, estavam ali, e, de repente, apareciam noutro sítio ou caíam no chão, como se alguma mão invisível os tivesse empurrado. Assim que pegávamos neles para os pôr no lugar, caíam novamente. A Mãe ralhava-me muitas vezes, mas a culpa não era minha, não é? Não era como se eu mandasse as coisas comportarem-se assim. Ou era?

A Mãe tornou-se amarga com o tempo. Estava sempre a barafustar comigo. Cada vez detestava mais estar perto dela. Fugia pela charneca, falando com plantas e animais, fazendo amigos dos insetos. Acho que eles me entendiam muito bem, a mim e às minhas dores. 

Às vezes, gritava ao vento.

Quando estava zangada ou só aborrecida, escondia-me num recanto junto da lareira e acendia fósforos, uns atrás dos outros, e observava a chama até queimar os dedos. Por causa disso, tínhamos sempre poucos fósforos. Sempre que a Mãe me encontrava a queimar coisas, dava-me palmadas no rabo com uma fúria… Proibiu-me de mexer nos fósforos.

— Não podes proibir-me de brincar com o que eu quiser! — disse eu. 

Ela resmoneou e disse-me que era minha mãe e podia proibir-me do que quer que fosse sempre que quisesse.

— AMALDIÇOO-TE! — gritei. 

A Mãe olhou para mim com olhos de louca. Deu um passo atrás, quase como se tivesse medo de mim. Talvez consiga mesmo amaldiçoá-la, pensei eu. E as palavras saltaram-me da boca:

— TRANSFORMO-TE NUMA ÁRVORE… e depois… ACENDO UM FÓSFORO!

E pronto. Assim foi. Agora, sou dona do meu destino… e da casa, claro. E posso brincar com todos os fósforos do mundo. 

 

Anteriormente publicado em Train Wreck, a Miscellany. A tradução para português é da autoria da autora.

SOBRE A AUTORA

Leonor Hungria

Leonor Hungria nasceu em Lisboa, no dia 6 de novembro de 1977, arruinando assim os planos da sua mãe de ver o último episódio da telenovela Gabriela. Foi fonte de mais alguns aborrecimentos durante a infância: era habitual os pais encontrarem-na a desenhar nas paredes da casa, especialmente debaixo do lavatório, onde os gatafunhos passariam despercebidos. Ou assim ela o pensava.
A sua paixão pelo desenho, pelos livros e pela escrita cresceu na adolescência, o que fez dela uma «croma» sem remédio.

O seu corpus de trabalho abrange os géneros neovitoriano, gótico e horror, sempre com algum humor. Negro, claro.