A Avó Toma Conta

de Patrícia Lameida

 

Calma, pequenino, a avó está aqui. Não chores, shh… Se estiveres caladinho, o teu pai nem se aproxima. Ele acha que tens pouco interesse e é melhor que pense assim. Não o queremos por perto, que por esta hora já vem bem carregado com o que emborcou na tasca. Bebe muito, o teu paizinho. Eu dizia sempre à Madalena, à tua mãezinha, que deus a tenha: «Filha, é um desgraçado como os outros». Shh… Não chores, a avó enrola o cabelinho com cuidado, nem se vê. O dedo é pequenino, não custa nada… Era teimosa a tua mãe, tão teimosa! «Estuda, rapariga. Deixa os namoricos.» E ela não largava o teu pai. Levou-a na cantiga, com as palavras cantadas, de roda da rapariga, sempre a bicar na fruta proibida. «Mas, mãe, é trabalhador!», dizia ela. E, por fim, ele acabou foi por lhe picar os miolos. Shh… A avó deixa bem apertadinho, para ser mais rápido. Já sabes como é, dói um bocadinho a princípio, depois passa. Pois é, deixou-se levar, a tua mãe. Ele bebia, e bebia bem, eu bem via. Na taberna, não fazia ele gazeta; todas as tardes, abancado ao lado dos outros. Senta-se no mesmo banco onde o teu avô se alapava, sabes? Não o vais conhecer, já cá não está, que o diabo lhe prende a alma desde que lha mandei. Shh… Pronto, pronto. A avó embala no colinho e faz uma chupetinha. Açúcar, bem enroladinho na ponta da fraldinha, como o meu bebé gosta. Vai benzidinha para dormires melhor. Ainda há por aqui um resto do porto do teu avô. Isto passa, pequenino, como os outros.

 

***

 

Olha, bebé, quase, quase. Já está roxinho, não tarda a cair. É o último, pequenino. Sem eles, não me fazes mal. Nem a mim nem a ninguém. Se alguém tivesse feito o mesmo ao teu pai, a minha Madalena ainda cá estava. Passa o dia fora, o farrapo de gente que te fez, mas é melhor assim. Não o aguento por cá muito tempo. Ter o homem que me levou a menina a dormir debaixo do meu teto, onde é que já se viu. E o que é que faz a polícia? «Foi um acidente, a pobre caiu.» O raio! A minha Madalena era mais equilibrada em cima de um par de saltos do que um homem sentado. Traste! Foi esse traste… Tu não tens culpa nenhuma, meu menino. Crescer sem mãe e com uma besta por pai, pobre inocente que não pediu para descer a este mundo. Vale-te a avozinha, meu amor. Vês? Já não dói. Está roxinho, sim senhora. Sem eles, não podes fazer nada a ninguém. Vale-te a avozinha enquanto não souberes limpar o rabo. Assim que consigas dizer asneiras, ele senta-te ao lado dele na taberna. Começas com um copo de vinho doce e, em menos de nada, enfrascas na mesma medida do teu pai. Toma a chupetinha, pequenino. Um cheirinho para dormires melhor. Shh… A avó toma conta de ti.

 

***

 

Pequenino, já caiu! Menos uma preocupação. E olha como o coto ficou lisinho. A avó foi aprendendo. O primeiro custou mais, apertei pouco. Se apertarmos bem, só um fio de cabelo bem enroladinho, é mais rápido e fica lisinho, depois de cair o dedo. Vamos guardar na caixinha com os outros. Olha que limpinhos… Oito, nove e dez — dez dedinhos. Sem eles, não fazes mal a ninguém. E vais dar um excelente rapaz, gente de bem, que sem pedacinhos o teu pai quer-te ao largo. Ficas de roda da saia da avó que comigo por perto ninguém te faz mal. Agora aquela besta, como é que se diz teu pai? Nem olha pra ti! A ver se notou alguma coisa? Quer-te calado, alimentado e longe dele. Se não souber de ti, não dás trabalho. Mas tu portas-te bem com a avó. Ficas caladinho, não é, meu anjinho? Shh… Dorme, pequenino, o sono dos inocentes. A avó está aqui, a avó toma conta.

SOBRE A AUTORA

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.