A Boleia

de Marta Nazaré

 

Sempre achei as pessoas muito cruéis e egoístas. Comigo não costumam ser simpáticas. Na verdade, gozam-me por causa dos meus dentes encavalitados e tortos. São tão grandes e incómodos que me impedem de fechar a boca corretamente. Mas todos na minha família padecem deste mal. A minha mãe diz que uma rapariga franzina e tímida como eu tem de ganhar calo para as agruras da vida. Assegurou-me de que as rasteiras e empurrões dos meus colegas de turma, por exemplo, formam o caráter. E com o tempo, aprendemos a ignorar os insultos. Aliás, já ninguém me chama pelo nome. Sou a «dentuça» ou a «dentes de cavalo». Perdi a conta às vezes que me pediram para relinchar.

Portanto, foi com grande surpresa que hoje, a caminho de casa, fui abordada com amabilidade por um senhor distinto, preocupado com a segurança de uma rapariga sozinha na rua àquelas horas da noite. Com uma simpatia rara, ofereceu-se para me dar boleia até casa. «Era o mínimo que podia fazer», sossegou-me, abrindo-me a porta do carro.

Hesitei de início, mas acabei por entrar e me sentar no banco de trás, enquanto a sua voz melodiosa me perguntava onde eu morava e se alguém me esperava em casa. Escondi um sorriso danificado, agradecida, e respondi que só a minha irmã mais nova me aguardava. Acrescentei que estava a tomar conta dela na ausência dos nossos pais.

O veículo arrancou pouco depois de trancar as portas. À medida que lhe ia dando as direções, comecei a sentir-me mal por lhe ter mentido, mas a minha mãe tinha-me pedido para levar o jantar para casa, e estes bons samaritanos são tão fáceis de enganar.

 

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.