A Caixa

de Raquel Fontão

 

Foi num dia de mercado que te vi, pela primeira vez.

O ar cinzento esborratava as bancas dos vendedores numa tonalidade quase inexistente. Uma chuva cerrada cobria todo o mercado, lavando a sujidade incrustada e abafando os ruídos animalescos. Ali, pobres almas enfeitavam a banca com os seus legumes mais aceitáveis, tentando alimentar as bocas pequeninas que se espalhavam à sua volta. Rações eram distribuídas, odores nauseabundos alastravam-se até aos limites das estruturas.

E tu, ali.

Uma sombra da tua mãe, da tua irmã. Franzino e quedo, seguravas a tua mão minúscula na da tua irmã, com uma inocência ainda de criança. Tudo em ti era tão pequeno, tão diminuto, menos essa caixa horrível que te cercava a cabeça.

Era uma caixa de pinho, com duas aberturas nos olhos e uma outra no lugar da boca. Os teus olhos, duas fendas negras e dóceis, espreitavam com humildade. Na boca, uma abertura retangular servia como uma travessia para te alimentar. Do tabernáculo, não saía nenhum som. Não comunicavas, disseram-me quando perguntei.

Nem o teu cabelo conseguia entrever. O da tua mãe era claro e o da tua irmã também. Talvez fosse semelhante ao do teu pai. Um pai há já muito desaparecido. Um acidente, disseram-me também.

Só tinhas tu oito anos e apertavas a mão da tua irmã numa rigidez visível, com um medo de que, se a deixasses, ficaria a levitar no vazio criado à tua volta. A caixa suscitava suspiros de misericórdia e piedade, quando passavas na praça. Sempre de mão dada, sempre tão inseguro junto da tua família.

Nesse dia, voltaste-te na minha direção. Na direção do meu olhar. E eu, homem de Deus, de ti tive receio. O choque levou-me a aceitar essa tua ligação. O teu corpo movia-se, mas nunca desviaste o olhar, a caixa sempre fixa em mim.

Receio, rapaz, ter correspondido ao teu olhar.

 

*

 

Durante os dias seguintes, esperei ver-te novamente no mercado. Questionar-te com o olhar o porquê de usares essa caixa. Indaguei junto de alguns habitantes a tua história, o teu passado. Vim para este presbitério em missão e queria ajudar-te. Livrar-te desse peso que te ocultava a alma ainda pura de criança.

Contaram-me que uma deformação te sensibilizava ao som e à luz. Que estímulos fortes te deixavam inutilizado, de cama durante dias. Usavas a caixa para te proteger dos sons, da luz do Sol e do luar.

Tentaram curar-te, mas em vão. Tentaram não te estimular, mas recaías num qualquer estado catatónico. O teu pai, então vivo, fez-te essa caixa, de pinho leve para não te pesar nos ombros. Eras tão pequeno que se tornou um hábito, uma parte do teu corpo.

Não te importaste.

 

*

 

Por vezes, encontrava a tua mãe nos meus passeios habituais pela praça. Só agora reparava no seu estado de nervosismo vigilante. Sentia-lhe o frio, os arrepios. O passo dela estugava-se sempre que passava junto a mim. Eu, presbítero de M., queria ajudar-vos, mas a tua mãe escondia o olhar, numa humilhação incompreensível.

Esta manhã, segurei-lhe o braço com força suficiente para a fazer parar. Ela tremia perante a minha presença. A minha força demonstrava piedade e preocupação. A tua mãe tremia à mesma.

Disse-lhe que te iria visitar. Ela não gostou, mas sentiu que não tinha escolha. Tu és o meu dever agora. Preocupo-me contigo. Quero ouvir-te rir por detrás dessa tua caixa.

 

*

 

É de tarde, já. O dia carrega uma atmosfera de energia acumulada. Sinto o ar pesado, cortante. Caminho apressado em direção a tua casa, como prometi.

A tua casa, um palacete respeitável, situa-se na parte posterior da aldeia, emboscada por pinheiros cerrados e sombrios. Uma visão deslumbrante, no entanto.

A tua família é respeitada, tem posses. A tua mãe ajuda no que pode, dando tudo o que produz. Sempre muito humilde, quase contrita. Todos na aldeia se mostram resolutos em não transparecer misericórdia ou piedade na sua presença.

Por fim, chego.

A tua mãe recebe-me numa cerimónia sem igual, num nervosismo que me deixa deveras complacente. Tu brincas com a tua irmã no silêncio da casa. (Recorda-me o quão sensível és.) Brincam entre murmúrios; em sussurros, comunicam. A tua mãe, numa gentileza ímpar, servindo chá no melhor serviço.

De repente, um estrondo. Longínquo, audível. É apenas um trovão, mas toda a tua caixa treme. A tua mãe grita de pavor e leva as mãos ao peito num miserere que me gela o coração. Fica ainda mais nervosa; a tua irmã em choque. Tu oscilas num movimento contínuo, circular.

A atmosfera é tão arrepiante que tento assegurar a tua mãe que tudo está bem. Trata-se unicamente de uma trovoada. Ela assente, mas a voz é já um fio imperceptível.

A tempestade cai profusamente lá fora. A luz apaga-se instantaneamente, a casa mergulha numa escuridão mortificante. O lampejo de um relâmpago atravessa a enorme janela da sala, e há um indício da tua caixa repousada no chão.

A tua mãe grita num profundo choque, ao ver-te no exterior das portas do salão. No teu rosto, o demónio mais terrífico que alguma vez vi; os olhos como fendas negras de um inferno oculto. Sangue de um lodo pútrido atravessa-te os dentes, tão afiados e protuberantes, e escorre-te lânguido pelo queixo.

Vejo a tua irmã rasgada no teu colo, um mar vermelho a resvalar-lhe do corpo. Desesperado, agarro na tua mãe num terror que me inibe o movimento. A tua mãe, quase desfalecida, faz o mesmo.

Tu gritas-nos, num latim hediondo, profundo:

Claude ostium!

(Fecha esta porta!)

 

SOBRE A AUTORA

Raquel Fontão

Raquel Fontão nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal.

Entrelaçou, desde cedo, os universos da música e da escrita. Estudou saxofone na ESMAE e licenciou-se como professora do ensino básico, com variante de educação musical na ESEP.

Atualmente, trabalha como professora de música e adora escrever todos os dias, transfigurando harmonias em texto. A sua predileção pelo modo menor faz com que o género de terror seja o seu preferido, perseguindo, com gosto, os monstros que a habitam.

Vive no Porto com o seu marido, filhas e as suas duas galinhas.