A Carta

de Ricardo Alfaia

Já faltava pouco para acabar a carta. Tinha as mãos húmidas e os dedos tensos de segurar a esferográfica com um pouco de força a mais. Os pensamentos eram-lhe tão estranhos que lhe secavam a boca. Era a primeira vez. Queria ser sincero e fazê-lo perfeito.

O som brusco da porta a abrir fê-lo virar-se repentinamente. Podia jurar que a tinha fechado à chave.

— Então? Ainda não estás pronto? És sempre o mesmo, calão até ao último segundo! Nem para o enterro do teu pai te despachas!

A voz aguda, alta e nervosa feria-lhe os ouvidos. Para ele, era como unhas a arranhar um quadro negro ou alguém a mastigar papel de alumínio. Já fizeste? Já tens? Quando vais? És isto! És aquilo! E não lhe venham dizer que é da puberdade. Nem tudo é da puberdade. O ódio, principalmente, é um sentimento que necessita de ser bem cuidado e bem regado para florir. E isso demorou o seu tempo.

— Aaaaiii! Aaaaiii!!! — gritou a mãe, histérica ao ver um bicho escuro à sua frente. Saltou para cima da cama e berrava ao ver a pequena aranha que descia vagarosamente do teto.

— Mata-a já! Já! — A mulher não se acalmava.

— Não te preocupes, mãe. Elas não fazem mal — respondeu ele enquanto fazia uma concha com a mão para recolher o animal assustado. Ao sentir a aranha na palma curvada da mão, fechou os dedos levemente e levou-a para o peitoril da janela. Devagar, abriu a mão e usou o indicador para empurrar o bichinho para a liberdade.

— Pronto… já está tudo bem — disse baixinho, num tom bondoso.

Mas tão depressa a esperança foi criada como destroçada. Assim que a aranha tentou fazer os primeiros movimentos para fugir, foi desfeita por um chinelo em alta velocidade.

PAH! 

Um som seco aterrorizante.

— Não era preciso, mãe — murmurou ele com olhos já húmidos.

— És um ESTÚPIDO! Eu disse-te logo para matares o bicho! És um ESTÚPIDO! UM ESTÚPIDO! NÃO SERVES PARA NADA! O TEU PAI É QUE TINHA RAZÃO! — gritava a mãe de punhos e olhos cerrados.

Ele virou-se devagar. Abriu a gaveta da escrivaninha. Tirou, de dentro dela, uma faca manchada de  sangue seco e pensou nas palavras que usaria para escrever a segunda carta.

 

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Alfaia

1969 (Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa) > Évora > Lisboa > Évora > Nuremberga > Ingolstadt > Weichering > Santa Cruz.

Empregado de mesa > cozinheiro > condutor > barman > casamento > assistente de fotografia publicitária > filho > fotógrafo > gerente de restauração > designer gráfico > filho > filha > web designer > autor > cofundador da Fábrica do Terror.

 

«O Homem planeia, e Deus ri.»