A Casa de Bonecas de Milly
de Leonor Hungria
Estava a ser uma tarde de cruel desapontamento para Rosa, de sete anos. O sol brilhava, as flores desabrochavam, os pássaros chilreavam… mas ela não sentia alegria. Só tédio. E ressentimento.
Os pais deviam tê-la levado a casa de Milly Clarendon, mas a empregada da família tinha vindo dizer que a menina estava doente e entregou uma nota à mãe de Rosa. Nela, lia-se que Milly não conseguia ocupar-se de mais que permanecer na cama e comer canja de galinha.
Rosa gostava de brincar com Milly — a gentil e adorável Milly, com cachos de cabelo dourado e olhos azuis. Milly tinha maravilhosas bonecas de porcelana e uma casa de bonecas que fazia os olhos de Rosa brilhar de contentamento. A casa era tão alta quanto as raparigas e tão comprida quanto os seus braços abertos. Rosa adorava brincar com ela: agarrava-a e abanava-a até todos os minúsculos pratos e copos caírem ao chão. Chamava a esta brincadeira «terramoto».
Rosa inventava muitas brincadeiras que envolviam a casa de bonecas: «inundação», «casa assombrada» e «incêndio» eram só algumas das suas favoritas. Milly não gostava dessas brincadeiras, mas nada fazia para as impedir.
O «incêndio», contudo, não correu bem. Parte do telhado da casa de bonecas ficou chamuscado e um dos cachos de cabelo de Milly pegou fogo, queimando-lhe o couro cabeludo. Ela guinchou e correu em círculos enquanto Rosa ria loucamente.
Todo aquele chinfrim assustou Miss McDougall, a velha ama, que correu para o quarto de brincar e abriu a porta com um estrondo. Rosa calou-se e olhou para a ama com ar presunçoso. A Sra. McDougall empalideceu e segurou Milly, obrigando-a a estar quieta, apagando depois as chamas do seu cabelo. A comoção, no entanto, foi demais para a pobre senhora, que acabou por ter uma apoplexia. Dizia-se que a Sra. Pruitt, a governanta, cuidava agora da Sra. McDougall, ainda incapaz de falar.
Rosa sorriu ao recordar o incidente. Que pena só termos brincado ao incêndio uma vez. Mas pensou… Isso foi na semana passada. E a Milly parecia bem ontem na escola. Só estava mais calada do que o normal. Será que…? Rosa sentiu a raiva crescer. Será que a Milly e a mãe dela estão a mentir?
Bem, Rosa não se ia deixar ficar. Iria a casa de Milly. Sozinha, se fosse preciso. A menina foi ter com a mãe e disse-lhe que tinha de fazer uma visita à sua amiga, que estava doente. Não iria descansar enquanto não estivesse com a sua querida Milly e se assegurasse de que ela estava no bom caminho para a recuperação. Depois de algumas lágrimas e súplicas, a mãe acedeu.
Rosa olhou, triunfante, para a sua imagem no espelho, enquanto a ama lhe penteava o cabelo negro e luzidio. A mãe nunca dizia que não ao seu anjinho.
*
Sarah, a criada, ficou horrorizada ao olhar para a figurinha magra de Rosa quando abriu a porta. Com relutância, deixou que ela e a mãe entrassem, pedindo desculpas antes de ir em busca da Sra. Clarendon.
Pouco depois, ela surgiu, corada e apertando as mãos. Sorriu timidamente para a mãe de Rosa e dirigiu-lhe um cumprimento breve. Esta dirigiu-se à elegante senhora Clarendon, elogiando a sua própria filha, dizendo que Rosa não conseguiria descansar sem primeiro ver a sua pequena amiga. A Sra. Clarendon arregalou os olhos. Começou por dizer que era de todo impossível, que Milly estava demasiado combalida.
— Mas eu não me vou demorar nada. Só quero ver se ela está bem — disse Rosa, com uma voz suave e inocente.
A Sra. Clarendon rendeu-se.
Rosa, para sua surpresa, foi conduzida ao quarto dos brinquedos, em vez de ao quarto de dormir. A criada cedeu-lhe a passagem e fechou a porta. Então estás aqui, pensou Rosa. Mentirosa.
Milly estava no centro da divisão, imóvel, como se estivesse pregada ao chão. Parecia ignorar a presença de Rosa atrás de si. Falou então de forma antinatural, com uma voz fria e áspera, uma voz que não parecia ser a dela.
— Aí estás tu, Rosa. Vieste brincar comigo, Rosa? Vieste brincar ao incêndio? — A respiração de Milly era pesada. Rosa estremeceu. As pernas tremiam tanto que mal se tinha em pé. Milly voltou-se, devagar.
O rosto dela desfazia-se, o branco dos ossos a entrever-se por baixo da carne que se rasgava. A testa exibia duas protuberâncias, como chifres. E os olhos — ó Céus, os olhos! Estavam raiados de sangue, o azul da íris reduzido a uma linha fina, circundando os poços negros e sem fundo das suas pupilas dilatadas.
Rosa sentiu o quarto rodopiar, as sombras adensaram-se e tudo caiu na escuridão.
*
Quando Rosa voltou a si, não sabia se se tinham passado minutos ou horas. Estava deitada numa cama bonita e elegante que não conhecia, mas, ao tentar sentar-se, descobriu que não era capaz de se mexer. Nem um dedo. Era como se o seu corpo estivesse preso num estojo muito apertado. Olhando pelo canto do olho esquerdo, só conseguia ver um papel de parede vagamente familiar. Ao olhar pelo canto do olho direito, porém, teve uma nova razão para espanto: não havia parede. E, de repente, percebeu. Estava dentro da casa de bonecas.
Nesse instante, uma mão gigantesca pegou em Rosa. Era Milly. Parecia de novo ela própria, sem chifres ou pele dilacerada. Era como se nada tivesse acontecido. Milly fez um sorriso rasgado, os seus olhos brilhando com perversidade.
«Até que enfim, dorminhoca.» Milly caminhou até um espelho e ergueu Rosa, para que ela se conseguisse ver. No reflexo, Rosa viu então que Milly segurava uma boneca de porcelana vulgar, com cabelo negro e luzidio e roupa semelhante à que trouxera vestida. Ao vê-lo, gritou, mas nenhum som se fez ouvir.
— Apetece-me brincar — disse Milly, com um sorriso. — Queres brincar, Rosa? Inventei uma brincadeira nova. Oh! Acho que vais adorá-la. Chama-se «desmembramento».
SOBRE A AUTORA
Leonor Hungria
Leonor Hungria nasceu em Lisboa, no dia 6 de novembro de 1977, arruinando assim os planos da sua mãe de ver o último episódio da telenovela Gabriela. Foi fonte de mais alguns aborrecimentos durante a infância: era habitual os pais encontrarem-na a desenhar nas paredes da casa, especialmente debaixo do lavatório, onde os gatafunhos passariam despercebidos. Ou assim ela o pensava.
A sua paixão pelo desenho, pelos livros e pela escrita cresceu na adolescência, o que fez dela uma «croma» sem remédio.
O seu corpus de trabalho abrange os géneros neovitoriano, gótico e horror, sempre com algum humor. Negro, claro.