A Cave

de Sandra Amado

 

Polónia, 3 de setembro de 1939

Está escuro, a humidade da cave gela-me os ossos. Estou paralisada na minha cama de metal com os lençóis a tresandar a mofo e a secreções de peixe podre. Tenho saudades da frescura dos lençóis a cheirar a lavado.

Capto um som metálico no andar de cima. Abre-se uma porta e passos percorrem apressadamente a escada. Quero gritar, mas a mordaça impede-me. Os passos soam mais perto, o meu estômago revolve-se.

Enoc senta-se na minha cama, passa a mão no meu cabelo e com umas mãos grossas e ásperas percorre-me o baixo-ventre. Ofereço resistência, mas as correntes impedem-me.

— Cala-te — disse-me numa voz madura e familiar.

Sinto o corpo peludo e volumoso deste monstro contra o meu. Segue-se uma dor fina, aguda, genital. Debato-me, mas este reage num esgar:

— Quietinha!

 

Polónia, 4 ou 5 de setembro

Acordo de manhã de corpo dorido e suado, sem vontade de viver. Lá fora, alguém morre nos bombardeamentos depois da ocupação militar, mas a cave resiste às bombas como uma cruz.

Aqui, a guerra é outra, nunca sei quando ele vai chegar. Já tentei estabelecer um padrão mental de hábitos, mas vivo na escuridão e não tenho como escrever. Existo num estado de confusão. Não sei se ele trabalha, nem o que faz, nem a que horas chega. Ele e os sons dentro e fora da cave são a minha única ligação ao mundo.

Tarde fatídica aquela, em que tentando escapar a um alvo militar me enfiei numa carrinha e acabei aqui — preferia ter morrido.

 

Polónia, entre 6 e 10 de setembro 

Hoje, não me trouxe comida nem água. Não sei o que se passa. Apercebo-me de discussões no andar de cima, soa-me a uma voz de mulher. Depois, ouço a voz de Enoc, mais alta. Caem alguns objetos e segue-se o som de um tiro. Pelo menos, acho que foi um tiro.

Ouvem-se os gritos de uma mulher.

 

Polónia, algures em setembro

De Enoc, não há sinais desde ontem. Nem da mulher. Não há portas a bater, nem sapatos de salto a pisotear o soalho. Desespero, acorrentada a esta cama no escuro, sem água, sem comida, sem ninguém que me possa valer. A minha única esperança é aguardar por um bombardeamento. E ter a sorte de que ele atinja esta cave.

SOBRE A AUTORA

Sandra Amado

Sandra Amado nasceu em Lisboa, em 1972, e vive no Luxemburgo desde 2011. Em Portugal, licenciou-se em Sociologia. No Luxemburgo, estudou Gestão, desenvolvendo, ao mesmo tempo, uma paixão pela língua francesa.

As saudades de Portugal e uma nova identidade cultural foram os motores da escrita — mal du pays, como dizem os franceses.

Iniciou-se na escrita criativa em francês, sempre com vontade de ir mais além. Durante o confinamento, apaixonou-se pelos cursos de escrita de terror da Escrever Escrever, integrando, mais tarde, a antologia Sangue Novo, com o conto «A Mais Bela Profissão».

Aprecia o gótico, as emoções, as sensações e a acústica que cria nos seus contos. Acredita que o percurso de uma vida normal, como a sua, poderia dar um conto de terror, e é por isso que acredita nesta escrita.