A Cigana
de Maria Varanda
O documento de texto composto por uma única página e duas palavras (Capítulo Um), criado e inalterado há quase um mês, fora substituído por um site onde uma grande imagem ensinava as bases da quiromancia.
Há horas que os olhos de Lucas oscilavam entre a mão direita e a mão esquerda, observando o seu formato rude e quadrado, a pele grossa. Examinou a linha do coração quebrada a meio, perdeu-se na contagem dos traços que cruzavam com a sua linha da cabeça e no que simbolizavam. Ao contrário da cigana, não tivera dificuldade em encontrar a sua linha da vida, passara demasiado tempo a conhecer as palmas. Parecia um semicírculo pequeno feito com grafite 3H em torno do polegar; era ténue, mas dela partia a linha do destino, ao qual ele estava rendido.
«Mãos de terra», dissera a cigana. «São elas que fazem o trabalho.» Por curiosidade ou embriaguez, após um jantar de amigos, Lucas decidira entrar na pequena loja a escassos metros da sua casa, e cuja montra coberta de sedas em tons de roxo exibia um cartaz dourado com letras negras:
Tarot, runas e palmistria
Compreenda o seu passado, descortine o presente e desmistifique o futuro.
(pré-pagamento)
Sorrira e completara com «sim, sou escritor, a minha vida depende destas mãos».
As sobrancelhas da cigana uniram-se, formando rugas na testa jovem, em descrença. Envolvera a mão esquerda de Lucas. Ele reparou nos dedos femininos longos, as palmas pequenas e retangulares, a pele suave — eram tão diferentes das suas. Sentiu um calor subir-lhe à face e descer-lhe à púbis, mas só por um instante, até a cigana se pronunciar, a rir-se: «Escritor? Não, não… Isto não são mãos de escritor. Se alguma vez escrever alguma coisa com elas, é a lista das compras. Ou um puro golpe de sorte.»
O calor voltara a subir-lhe todo à face e incendiara-lhe a garganta.
As semanas passaram devagar depois disso, e o documento de texto permanecera vazio. As mensagens e os emails do editor que representara o seu único romance até à data acumulavam-se sem resposta. O voice-mail atingira o limite, e a página continuava apenas pintada pela frase «Capítulo Um». Na primeira semana, pensou ser um bloqueio desencadeado pela raiva. Na segunda, as imagens e ideias surgiam no cérebro, mas as mãos não as conseguiam transpor em palavras. Pensou ser coincidência. Mas, na terceira semana, levantou-se uma questão: «e se?». Completara a quarta semana naquela noite e tomara uma decisão — afinal, tinha mãos trabalhadoras.
Não dormira, as olheiras marcavam-lhe o rosto magro e a visão estava turva — não sabia se do cansaço ou dos óculos sujos. Mas as linhas, essas, via-as bem, intensificadas pelo contraste do sangue seco na sua pele branca.
Abriu o saco do ginásio que tinha ao lado da cadeira e tirou um boião que pousou na secretária. Selecionou o documento de texto, o branco puro encadeando-o. Fez a primeira alteração à sua nova obra: «Capítulo Um — A Cigana». Só parou de escrever quando atingiu a quinquagésima página, a mente racional sobrepondo-se à criatividade, certa de que o repouso ajudaria a manter o ritmo com que as palavras formavam uma história.
Ao pressionar o símbolo da disquete e guardar o primeiro capítulo do seu novo romance, olhou mais uma vez para o boião sobre a mesa. Duas mãos cor de mel, de dedos esguios e palmas pequenas, boiavam em formaldeído. Ela tinha mesmo umas mãos bonitas.
SOBRE A AUTORA
Maria Varanda
Nasceu no ano de 1994, sob uma lua minguante, em Sintra, e cresceu a ouvir histórias da aldeia, sobre o papão e ossos escondidos na cave — ganhou-lhe gosto. Está sempre à procura de inspiração na vida real para mais uma história, mas na falta de ideias basta tirar o tabuleiro de ouija, acender umas velas e esperar. Depois, é só passar a mensagem para o papel. Procura-se quem queira ouvir.
A mensagem parece ter chegado aos ouvidos de alguns, com a atribuição do Prémio Adamastor de Ficção Fantástica ao seu conto, «Anfitrite».