A Dança das Ruínas

de Nuno Amaral Jorge

A dança tinha recomeçado. No escuro, podia ouvir a música e o som dos pés na madeira centenária do salão.

A dor na perna era agora uma espécie de farol aceso, insuportável na sua intensidade, mas impedia que me perdesse de encontro à inconsciência, de onde dificilmente sairia.

Há algo na expectativa e medo da morte que instila uma inquietude impossível de reproduzir, a não ser que a tenhamos vivido. É um misto de desespero e cansaço que nunca cessa, nunca amaina, mas também não permite que desistamos. A vida é coisa teimosa.

Os cortes tinham sido cirúrgicos. E não se trata de uma metáfora. Quem os levara a cabo sabia bem o que estava a fazer. O objectivo era claro: limitar movimento e causar dor prolongada, mas não suficiente para me fazer entrar em choque e, claro, dissolução. Sim, essa palavra que, de repente, me pareceu tão sedutora como o inevitável desejo de segurança, de fim, como sentem os órfãos na mais desesperante das saudades face aos que não voltam.

A música aumentou de cadência.

Só de pensar em usar a perna para qualquer coisa era excruciante, quanto mais dançar ou andar de um lado para o outro. E, no entanto, a minha curiosidade mórbida, associada ao medo, não parava de me fixar no que poderia estar a acontecer do outro lado da porta. Que seria uma espécie de espectáculo de horrores não me parecia haver grandes dúvidas, mas é tão humana esta coisa de querer ver o acidente, de querer acabar com a curiosidade e a ansiedade aterrorizada, ainda que seja para perder a sanidade perante o que se possa ver.

De repente, senti uma guinada incrivelmente aguda na parte de trás da perna, mesmo antes da secção mais exposta do tendão de Aquiles. Passei por lá a mão e a textura era óbvia, bem como o cheiro metálico, simultaneamente agradável e terrível. Se continuasse a fluir daquela maneira, o sangue acabaria por passar para fora dos locais onde deveria correr, e eu também sairia… para algum lado.

E que alívio seria. E que medo. A insanidade, ali, espreitava de perto, assim como a maldita e tentadora perda de consciência, que, com sorte, levaria a dor e a substituiria pela morte.

Dor. Novamente. Desta vez, do corte nas costelas: pulsante, profundo o suficiente para permitir que metade da falangeta do indicador penetrasse na carne, também ele levado a cabo de maneira a prolongar a vida em termos intoleráveis, forçando-o à percepção de que esta se ia, lenta e inexoravelmente.

Um som. Passos. Nem me apercebera de que a música tinha cessado, pelo menos por momentos.

A porta da sala onde estava abriu-se. Um jorro de luz amarelada e doente iluminou a biblioteca antiga, enfeitada com estátuas grotescas de personagens familiares. Chtulhu, por exemplo, encostava-se a uma antiquíssima e pesada estante mesmo ao meu lado, na qual se viam dezenas de volumes de Lovecraft, Bierce, Poe, Hoffmann e por aí fora. É estranho aquilo em que nos concentramos, apesar de mergulhados no medo próprio da antecâmara da loucura.

Um homem enorme, com cabelo comprido e desgrenhado, vestido com o que parecia ser a farpela de um médico da peste (sem a máscara de aspecto feral e avícola), aproximou-se de mim. A face estava pintada de forma desconexa, já que ambos os olhos estavam contornados por batom, formando lábios mal desenhados, enquanto os lábios propriamente ditos estavam pintados de preto, com ligeiros filamentos negros, fazendo lembrar pestanas, também elas desalinhadas.

Levantou-me como um boneco de trapos e levou-me para o salão de baile, embora este pudesse ter outros, e mais terríveis, nomes. Havia, de facto, um centro desimpedido, onde se poderia dançar, mas a dança, ali, era outra.

No centro, amarrados, estavam vários pares de dançarinos, cada um deles arruinado à sua maneira, formando o grupo de baile mais macabro que se poderia imaginar. Havia uma mulher com bocados de cabelo arrancados à mão, o sangue gotejando dos locais onde alguém, talvez o meu anfitrião, os teria puxado com uma força selvagem. O homem com quem a mulher emparelhava tinha uma das pernas claramente partida abaixo do joelho, já que o osso ziguezagueava num formato longe de natural. As expressões dos dois eram já de uma agonia para lá do limite e, ainda assim, algo os agarrava à vida, teimosa e dolorosamente. Era uma esperança inútil, o que tornava tudo ainda pior.

Fui amarrado a uma mulher com um rosto outrora lindíssimo, mas cuja pele estava retalhada por algum estilete incrivelmente fino e afiado… ou talvez um bisturi. A quantidade de cortes era tal que não fazia ideia de como a face simplesmente não se desfizera. Era como olhar para uma filigrana de pele e cicatrizes ainda húmidas.

A música recomeçou.

O anfitrião, ostentando um sorriso doentio, bateu no chão com o que parecia ser um bastão próprio para as pancadas de Molière. A ordem era clara, nem que fosse pelas lâminas, alicates e até uma arma de fogo em cima da mesa, junto a cabelos arrancados, panos manchados de sangue e pedaços de qualquer coisa que nem queria saber o que era.

A dor tornou-se insuportável, mas algo na música me obrigava a mover ao som de um solo de violoncelo. Tão adequado.

A melodia continuou, até mesmo quando dois outros homens, envergando farpelas semelhantes às do anfitrião, irromperam por uma outra porta, carregando uma mulher que gritava a plenos pulmões. Sabia bem o que ela sentia. Era pior ainda saber o que a esperava.

À medida que ela era levada para a biblioteca, o anfitrião ordenou que a música continuasse, deixando um dos comparsas como monitor da dança. Depois, desapareceu pela porta. Levou um alicate na mão esquerda.

Os gritos começaram, mas a música não parou, aumentando apenas de volume. A dança, por isso, continuou. Até quando, ninguém sabia.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance, além de bibliófilo. É guionista no projeto de banda desenhada portuguesa Apocryphus, desde a sua primeira edição, em 2016. Em 2018, publicou um livro de contos infanto-juvenis chamado A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias, e em breve será publicado um segundo volume de contos, ambos pela editora Ideias com História. Em 2019, publicou um romance chamado As Três Mortes de um Homem Banal,  pela Editora Planeta e, em 2020, participou na antologia de contos na edição comemorativa dos 30 anos da APAV, À Roda de uma Vontade. Em 2022, publicou um conto na antologia Os Medos da Cidade, da Editorial Divergência e pretende acabar um romance que se encontra «a meio», bem como um conjunto de contos de terror e fantástico. Stephen King é a sua referência.