A Escritora

de Andreia Azevedo Moreira

«Alice, vem deitar-te.»

 

Francisco chamava-a pela quarta vez. O tom paciente fora substituído pela irritação. Alice escrevia as entranhas. Quatro e meia da madrugada e premia as teclas do computador convicta do alívio.

 

«Já vou, querido. Está quase. Mais uma palavra e termino.»

 

«Uma palavra…» rosnou Francisco, enterrando-se nos lençóis. Desde que a mulher engravidara, pouco mais havia a fazer a seu lado, na cama, do que dormir. Cansara-se da procura frustrada. Tratava-se de uma fase e, apesar de subtil, Alice mostrava-se implacável na recusa. Escrevera a palavra «vazio» e regressara para perto dele, pouco tempo antes de o despertador tocar. Francisco dormia um sono pesado quando ela, antes de se deitar a seu lado, o beijou com ternura. Acomodou-se de barriga para cima com as mãos no peito. Estava inquieta. Não fora benigna a escrita. Não admitia ser doente perante os outros e nessa categoria também incluía o marido. Para o autodiagnóstico, contribuíra a formação em Medicina que a não deixava iludir-se: hipergrafia. Desconhecia, no entanto, ser estéril qualquer esforço de criação. Nenhuma ideia seria transmitida na catarse. Da ignorância alimentava o desassossego, crente de que o resultado seria a obra perfeita. Aquela em que cada caractere é legítimo. Fitava o escuro por cima de si e à sua volta. Os pensamentos sucedendo-se:

Eis a vida sem palavras: Escuridão. Amo Francisco, mas se não lho pudesse dizer… Se não lhe conseguisse sussurrar «Amo-te» quando lhe lambo a orelha antes de fodermos, seria como se o não amasse. Sinto pena dos mudos. O meu marido ficaria indignado se suspeitasse que, quando crê que faço amor com ele, o estou a foder. Se disser «fazer amor» diluo o acto. Quanta solidez… Não se trata de indecência. É pujança. Não compreenderia. Vê-me como uma coisa branda da qual se apossar quando lhe dá a fome antes de dormir, ou pela manhã, ainda o nosso hálito se encontra imperfeito da respiração nocturna. Por isso, por ele, lhe segredo, quando decido dizê-lo: «faz amor comigo». Nada espera das mulheres a quem aluga o tempo. A mim, exige candura. Cansa essa ingenuidade. Pois se somos animais.

 

Simula a própria caligrafia com o indicador no ar: «animais». Força o fecho dos olhos, como numa prece, para memorizar o termo que daí a umas horas anotará onde calhar. São essas as preocupações que a impedem de dormir, na maior parte das madrugadas. Palavras desgarradas que não pode esquecer nem deixar de registar, assim que lhe seja possível. Habituou-se à insónia, embora tema prejudicar os fetos. Com Gustavo, já não se preocupa há muito.

 

Afastamo-nos da irracionalidade porque criámos a linguagem. Nos momentos em que a mais visceral das lutas se trava, tanto os significados como a consciência são esquecidos. Somos criaturas movidas pelo instinto. Pele, carne, violência e prazer. Por vezes, sangue. Fresco. Pisado. Farejamos cheiros que nos impelem comportamentos que o pensamento e a moral condenariam. Julga-me melhor do que as prostitutas, o meu bom Francisco. Vê-me impoluta. Tenho-lhe dito, com o olhar, o contrário. Sou como os restantes, um sedento animal. — Desenha «sedento» na barriga. — Juntar sedento a animais. Acrescentar a palavra «putas», combiná-las com «ingenuidade». Será que me esqueço? Não posso! «Animais; Sedento; Ingenuidade; Francisco; Alice; Escuridão; Palavras; Putas.» Levanto-me, escrevo e regresso. Durmo duas horas, pelo menos. Acrescentar «horas»! Direi algum dia tudo o que preciso num vocábulo? Tenho de descansar.

 

Alice encolhia-se com as dores no estômago contraído pela náusea. A angústia alojara-se na garganta. Talvez fosse apenas fome. Não se recordava do que tinha jantado, nem a que horas. Levantar-se-ia uma vez mais, nessa noite, com cuidado para não acordar o companheiro, e fixaria as tiranas palavras, enquanto a urgência pingava sobre a mesa da cozinha.

 

O filho mais velho passa ao seu lado com o copo de leite morno na mão, sem ser visto. É invisível desde que guarda memórias. Desconhece qual dos dois odeia mais. Sabe, apenas, que no dia em que morrerem terá vontade de rir, ao constatar a humanidade na finitude daqueles dois seres abjectos que o condenaram à tristeza.

 

Para Alice, grávida, a psicose agravara-se. Não eram só as noites sem sono em frente ao computador. Escrevinhava em todo o lado. No pacote de açúcar, depois de o esvaziar no café; no interior da sua bata branca de médica, garatujado; no papel higiénico escurecido com parágrafos intermináveis. Chegara a dar-se o caso de, não tendo quantidade de papel suficiente para escrever e se limpar, ter optado pela escrita, desdenhando as consequências. Qualquer roupa sua tinha bolsos, e nesses havia sempre, no mínimo, duas esferográficas. Admitia que lhe faltasse qualquer outra coisa. Inconcebível seria não conseguir apontar os pensamentos brilhantes. Francisco alertava-a, há anos, que tudo o que fazia se resumia a frases incoerentes. Nada no seu insano comportamento seria digno de publicação. Revelava-se cruel para que ela o considerasse. Procurava poupá-la ao sofrimento de o ouvir por outra pessoa.

 

«Canaliza essa energia desregrada para outros fins, Alice! Procura uma ocupação que te realize e onde consigas ser competente.»

 

Agora que ela ia ser mãe, estava certo de que seria excelente para os filhos.

 

«Porque não te dedicas ao quarto dos bebés? Ainda não te vi fazer algo que fosse, para preparar a chegada deles. Decora-o como quiseres. Compra roupinhas para os meninos. Sê como as outras mulheres, Alice. Sê como todas! Não compliques. Se quiseres, meu amor, conta-me as tuas ideias e eu escrevo por ti aquilo que quiseste dizer durante este tempo e não foste capaz. Nunca passarás de uma escritora medíocre. Pior, não és escritora. É para teu bem que to digo.»

 

Alice, arrogante e agressiva, fazia pouco dele, nessas alturas. Humilhava-o, gélida.

 

«O que separa o teu êxito da ausência do meu é um órgão sexual destinado à queda. Ao fracasso.»

 

Desprovida de qualquer consciência da inépcia para o ofício que queria aprimorar, de cada vez que empunhava uma caneta, ou digitava no computador. O marido condoía-se por perceber a desconfiança dela, julgando-o despeitado. Dissera-lhe, todo desespero, que desse a ler os seus escritos a terceiros para que esses, isentos, lhe repetissem o que tentava provar há anos.

 

«Quando os reescrever,», retorquia. «Não tenho tido tempo. Sabes perfeitamente que ninguém, além de ti, me lerá primeiras versões.»

 

«Hipergrafia, Alice. Já o estudaste, sabes o que é. H-I-P-E-R-G-R-A-F-I-A», soletrou. «Tens de te tratar, Alice. Ouve-me, por favor. Essas ideias devoram-te. Desapareces, não percebes? Ainda não terminaste uma estória, começas outra. Escreves mal apenas para produzires mais.»

 

Alice sabia ao que Francisco se referia. Recusava-se, porém, a aceitar aquela fatalidade de a doença só produzir dor e ausências.

 

«Estou no limite, porra! Ouves? Como é que pretendes criar o Rodrigo e o Afonso?»

 

Estacava, focando-se no ventre aumentado que acusava o término da gestação.

 

«Haverá momentos meus. Como hoje. Continuará a ser assim. Nem tu nem os gémeos me privarão deles.»

 

Francisco atormentava-se com o futuro adivinhado, tão mais tortuoso quanto a crescente irascibilidade da mulher. Parecia penoso dizer-lhe que ela, enquanto autora, não prestava. Talvez agressão, como se lho dissessem de si e da sua obra. Esperava que a vida tomasse rumo autêntico e que ela se concentrasse na maternidade. Alice exprimia-se de forma infantil, dando erros ortográficos e gramaticais graves. Inadmissíveis para as suas aspirações. Ele chorava desconsolado o infortúnio de ambos. Esgotara os argumentos dissuasores.

 

Decidiu mostrar alguns exemplares de narrativas suas e da mulher à irmã mais nova dela, Clara.

 

Tão sexual quanto Alice, porém, recalcada. A sua contenção nasceu do desejo que Francisco lhe instigou desde a adolescência, problema imenso, principalmente quando passava grande parte do seu tempo junto ao casal, sendo confidente, ponto de equilíbrio, aconselhando-os e ajudando-os a sobreviverem enquanto par. Clara é vida acostumada a entregar-se aos outros, inteira, para se esquecer de si. Cria Gustavo, numa maternidade frustrada que magoa, entre a gratidão dele e o repúdio por ela não ser a sua mãe.

 

Francisco não identificou os autores em nenhum dos exemplares, e ela demorou poucos dias a analisá-los.

 

Aproveitou todas as ausências de Alice, para, no esconderijo de ambas, ler sem interrupções. Era o local ideal. Apertado, apenas o suficiente para os seus corpos irmãos se acomodarem em instantes de alegria ou paranóia. Só as duas se sentiam confortáveis naqueles íntimos metros quadrados.

 

A resposta chegou peremptória. Achara-se perante revelação de grande qualidade. Uma daquelas pessoas teria a capacidade de transmitir o que havia sido dito muitas vezes, antes de si, numa voz que soava diferente. Poderia mapear, sem dificuldade, as leituras que a suportavam. Afigurava-se, contudo, que a estrada paralela às linhas dos Mestres havia sido encontrada sem dificuldade maior. Encerrava naturalidade intrínseca. Francisco, incrédulo perante a escolha. A expressão de Clara fê-lo tremer com as mãos inseguras de quem carrega uma péssima notícia.

 

Remeteu, então, mais escritos de ambos para alguns amigos. Os autores, de novo, mantidos anónimos. As respostas arrasaram as suas estórias, apontando-lhes algumas das falhas que ele atribuía ao trabalho da mulher. Aterrado, releu inúmeras vezes a escrita de Alice e a sua. Incapaz de ver o mesmo que todos, considerou estar louco. Voltou a olhar para as cartas de resposta, confirmando que Alice era talentosa e ele sofrível. As respostas coincidiam, no essencial. Chorou, perdido. Interrogou-se à exaustão. Repensou a existência enquanto escritor. Não se rendeu. Queimou as cartas. Arrumou as criações de ambos nos lugares. Retomou o quotidiano doméstico. As discussões atingiram a intensidade de manifestações na rua. Combativo nas tentativas de dissuadir Alice da sua arte. Sem remorso.

 

Naquela tarde, viu-a dirigir-se à praia, do paraíso perdido que habitavam. Sem espanto, antes de deixar a vigia, na janela altiva, assistiu ao processo repetido das linhas incontáveis, escritas por Alice, a sucumbirem às ondas.

 

A porta rangeu. Encarou o tecto de olhos mortiços. O silêncio asfixiava-o. Os minutos caíam-lhe sobre o peito oprimido.

 

«Alice vem deitar-te.»

 

Resposta nenhuma. A casa vazia. Aguardou pouco. Iniciara a derradeira oposição. Não mais seria benevolente, ou permissivo.

 

«Alice vem deitar-te…»

«Alice…»

 

Impaciente, procurou-a.

 

Do chão, uma Alice nua, letárgica, enfrentou Francisco com olhos de gelo, desafiadores.

 

Ele olhou para os seios antes de qualquer outra parte do corpo. Era o que mais gostava nela. Horrorizado, observou-a coberta de sangue. Alice utilizara uma lâmina para se cortar.

A parede, perto, escrita a sangue.

AJUDA.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Andreia Azevedo Moreira

Andreia Azevedo Moreira (Lisboa, 1978) licenciou-se em Engenharia Florestal e não exerce. Não estudou Letras, mas devota-lhes a paixão. Escreveu os argumentos e os guiões das curtas-metragens «Espelho Meu» (2018) e «A Escritora» (2019) em parceria com Hugo Pinto, o realizador, e o argumento/guião da curta-metragem «À Vida» (48HFP Lisboa), realizada por André Costa. Colabora com o projecto online Fotografar Palavras, idealizado por Paulo Kellerman. No papel, os contos: «Os Cães Ladram» (O País Invisível, C.E. Mário Cláudio, 2016); «Mar Fechado» (Grotta, n.º 4, 2019/2020); «A Vinte e Quatro Minutos da Eternidade» e «Abel» (Ed. Minimalista, 2020, 2021); «Pode um Corpo Morto», «As Paredes em Volta» e «Augustine e os Maus Sentimentos» (Nova Mymosa, 2019, 2020, 2021). Liberdade e gratidão: verbos. Pearl Jam, banda sonora.