A Face da Morte

de Alcides Cunha

 

Houve, em tempos já idos, um homem como qualquer outro no auge da sua vida. Era amado pela mulher, pelos filhos quase adultos e pelos amigos. Era forte e saudável, um homem feliz que adorava a vida.

Certa noite, ao voltar da tasca pelos campos, encontrou uma figura negra que lhe impedia o caminho. O homem estacou sem saber bem porquê. Sentia suores e um vento frio que, por alguma razão, não abanava as árvores.

Reunindo coragem, perguntou:

— Quem és tu?

A figura começou então a aproximar-se, e o homem pôde ver que se tratava apenas de um sujeito de manto e capuz negros. Havia, porém, algo mais, algo errado. Era a forma como só o manto parecia ser afetado pelo vento; era o negro da roupa, tão negro que parecia tecido da própria noite, ocultando o rosto do indivíduo misterioso  por mais que ele o tentasse ver. Eis, então, que se ouviu uma voz, um gorgorejo que aparentava vir de dentro da sua cabeça e ao mesmo tempo ecoar nos campos, mas cuja fonte apenas podia ser a figura encapuzada:

Eu sou a tua morte, e virei buscar-te em breve. 

Ao dizer isto, uma rajada de vento fez esvoaçar o manto, revelando uma visão horrenda. O corpo da figura era um esqueleto em decomposição. Os ossos, retorcidos, não poderiam ser todos humanos, mostrando deformações impossíveis a qualquer forma de vida, com estranhas cordas negras que os ligavam nas articulações e que, ao mesmo tempo, se contorciam, como vermes de pesadelo. O homem não pensou. Como poderia pensar? Só lhe sobraram os instintos. Correu, fugiu, e só parou de fugir da morte quando trancou a porta de casa.

Ou assim pensou.

Nessa noite, mal dormiu. No pouco que fechou os olhos, foi atormentado por sonhos com a figura encapuzada em que não se conseguia mover, indeciso entre o puro terror e a vontade de lhe levantar o capuz, destapando o rosto da sua morte. Aquele rosto… Porque não tinha conseguido ele ver aquele rosto? É certo que não procurava a morte, mas, se o tivesse visto, talvez soubesse aquilo que lha traria, e a conseguisse evitar…

Nas semanas que se seguiram, quem o acompanhou pôde assistir à sua lenta, mas certa, descida para a loucura. De início, podiam julgar que apenas se tinha tornado mais cuidadoso, cumprindo todas as regras e limites na estrada, evitando acidentes, limpando maus hábitos. Foi enquanto a sua sanidade deu luta. Quando esta se começou a perder, passou somente a sair a pé, e mesmo estas saídas rapidamente se revelaram excruciantes, cada vez mais raras até se tornarem inexistentes.

Já não deixava a segurança da sua casa, mas mesmo aí não se sentia seguro. Havia escadas, cutelaria, cantos de mesas. Tudo lhe parecia perigoso. E as pessoas… No meio de tudo aquilo, eram a parte pior e a mais perigosa. Os antes amigos que o tentaram visitar — por preocupação, diziam eles — foram rápida e energeticamente expulsos, não fosse algum guardar velhos ressentimentos, alguma inveja ou conta por saldar.

Todos tinham um motivo. Até a mulher e os filhos, que agora odiava. Sempre a rondar, à espera de uma oportunidade para se livrarem dele e ficarem com a herança ou fugir com outro.

Tudo e todos cabiam debaixo daquele capuz que lhe escondia o rosto da sua morte. Podia ser qualquer um ou qualquer coisa. Tudo se parecia encaixar.

Dia após dia, a família continuava a aproximar-se, a orbitá-lo avidamente como moscas. E, como moscas que eram, só havia uma forma de lidar com elas: esmagá-las. Precisou apenas da ajuda de um martelo para as exterminar, uma por uma.

A gota que fez transbordar o copo, no entanto, não foi aquilo que havia feito, mas sim o cheiro. Não o incomodava partilhar a casa com aqueles corpos mutilados, cujas faces quase irreconhecíveis pareciam rir e dizer: «Como é bom não ter de me preocupar com a minha morte. Já estou morto! Obrigado, papá! E desculpa ter querido matar-te». Ao que ele apenas respondia: «De nada».

Mas o cheiro…

Aquele odor contaminava-o; dava-lhe a sensação de já estar morto. Ele, que ainda não parara de fugir e de se esconder da morte, estava a ser apanhado por ela, como se fosse ele próprio um cadáver andante.

Mas não podia sair, o mundo lá fora matá-lo-ia.

Entre sentir-se morto e a morte certa, uma corda e um banco foram a salvação. Talvez um último grito dos seus instintos, tentando resgatá-lo de maiores e inimagináveis horrores.

Nos seus últimos momentos, antes de perder aquilo a que, mesmo em termos académicos, dificilmente se chamaria consciência, olhou em frente e pôde ver o seu rosto refletido, de olhos fixos no seu. A questão é que nunca ali existira um espelho. E quando finalmente ele e o mundo se libertaram do tormento que era a sua existência, a Morte olhou uma última vez para o seu trabalho. Baixou então de novo o capuz, cobrindo e escondendo o rosto de trevas, e partiu daquela casa.

SOBRE O AUTOR

Alcides Cunha