A Frigideira
de Nuno Gonçalves
Foram as palavras que me puseram aqui.
Povo. Repressão.
Sinto que evaporam da minha boca, que se condensam em gotas no teto desta prisão e que me hão de cair na testa, com o peso do fracasso.
Proletariado. Sofrimento.
Fui livre enquanto as guardei no pensamento. Como ninguém as ouvia, resolvi escrevê-las. E cá estou, a vê-las escorrer do meu corpo num suor espesso como melaço.
Trabalhadores. Liberdade.
Brotam dos meus lábios, deixando para trás gretas profundas, escuras, vazias. Até a urina que acumulo no balde sai cada vez mais calada.
Esperança. Revolução.
Escapam-se todas até que me sobra apenas uma.
Água. Água.
SOBRE O AUTOR
Nuno Gonçalves
Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).