A Grande Falta

de Edgar Ascensão

 

Lá para umas décadas adiante, não muitas, a água potável escasseia. Os povos menosprezam a míngua, seguem olvidados com o desbaratar incauto desse recurso.
Uma geração depois, os rios secam, a água do mar torna-se intratável. Cidades morrem, animais extinguem-se, florestas dizimam-se. Vem a era da Grande Falta.
É no Alentejo que a humanidade se vai aguentando, transformando. Torres de contenção de água potável erguidas no alto de uma aldeia, quais monumentos de vida, salvam as gentes, conjuntam as mentes. Estas furam a terra ressequida, sugam a última gota escondida por entre o solo abrasador e guardam-na para mais tarde. Os tanques acumulam para os dias de falta.
Os Homens perdem certas fés, deixam de acreditar em Deus, no que não veem. Rezam antes para que o depósito esteja sempre cheio. Rezam para que não lhes falte a água. Rezam à torre, como outros antes, em Meca. A torre é o novo santuário. A torneira, o novo altar.
As igrejas são abandonadas, destruídas pelos anos quando ao lado, no seu apogeu, as torres-depósito são ampliadas, à luz estonteante de um Sol homicida.
O Sol criva a pele, semeia cancros, mata jovens e velhos. Para caminhar na superfície, todos andam de branco, tapados, como alienígenas numa terra distante. Não é a lepra, mas as roupas fazem lembrar tempos de antigamente.
Fazem-se procissões à torre, para receber o precioso líquido semanal. As pessoas, em fila, contornam a torre e esperam pelo rodar da torneira, do encher dos garrafões. À sua sombra, ganham mais uns dias de vida, para molhar os lábios secos e mirrados.
Um século passou. Uma nova torre se ergueu. Maior, um castelo, um bunker da vida. Todos vivem dentro das suas paredes. São toupeiras com um poço a seus pés. Os mais novos já não conhecem o poder do Sol, não saem ao exterior. Nunca viram a terra árida e arrasada.
A humanidade vive cada vez mais nas profundezas. Mais perto das raras nascentes que vão encontrando nas escavações.
O confinamento leva a casos isolados de psicose e loucura agressiva. Um ou outro ganha gosto ao sangue. Entre as brigas e as dentadas, o líquido espesso e encarnado é um néctar na boca dos desatinados.
Na escuridão, os gritos são abafados pela cantoria eterna vinda da Sala Comum, onde a maioria se reúne diariamente para rezar a lengalenga transmitida há séculos.
Os poucos escondidos e eremíticos bebem o sangue diretamente dos pulsos dos mais fracos, sugam o que podem antes de serem apanhados. Quando lhes metem a mão, o seu destino é a superfície. Morrem em poucas horas.
O mais velho dos humanos lembra os manuscritos, quando se contavam histórias e mitologias antes da Grande Falta. Falam das sanguessugas das cidades, a quem chamavam de vampe írios, que segundo os Textos, eram erradicados à luz do Astro. As histórias de assustar misturam-se com a realidade, sussurram-se em palavras, desenham-se pelas cavernas, ora com tijolo vermelho esfarelado ora com fezes. As pinturas vão dando histórias para que as paredes também as contem.
Por entre os mais novos, surge uma nova religião, o culto do Sol. A reverência tomba para a luz que nunca viram, o calor que nunca sentiram. De quando em vez, há um voluntário, um suicida, arrebatado pela curiosidade e pela devoção alimentada durante os tempos escuros.
Não passa outra década até que as poucas almas relutantes deixem de resistir. Chega o tempo para nada mais sobreviver. A vida humana chega ao seu fim e, em breve, a Terra irá reclamar outra era. Os humanos, desta vez, não farão parte dela.

SOBRE O AUTOR

Edgar Ascensão

Repórter de Imagem como profissão, é o hobby que o faz continuar a sonhar e a criar. Desde sempre ligado às artes visuais, fez já de tudo um pouco.
A cinefilia desmesurada ultrapassa o clássico visionamento de filmes, juntando-se à paixão pelas artes visuais para criar obras de ilustração digital, em jeito de cartazes alternativos. É sob a designação de Posters Caseiros que conta histórias com imagens.
Argumentista de um punhado de histórias BD publicadas em vários números da H-alt, foi também um dos membros fundadores da Take Cinema Magazine.
Já foi também pintor, designer e videomaker. Tão cedo não vai parar de criar.