A Lágrima

de Cláudia Passarinho

 

As cores rastejavam por baixo dos acrílicos contornando um rosto. Não era o pintor que comandava o pincel. Tinha-o usado para juntar iguais porções de vermelho, amarelo e azul. De seguida, banhara-o num copo com água e retirara o excesso de cor das bordas, como se limpasse o açúcar dos cantos de uma boca gulosa. O incolor tornara-se baço. Na paleta, tinha o resultado da base para o tom de pele pretendido.

Bruno Amadio voltou ao transe, mantendo os movimentos mecanizados e sem emoção. Estava prestes a completar uma série de vinte e sete pinturas. Esta seria a mais importante. As primeiras ficaram superficiais, simples manchas escurecidas com contornos escravos. Depois, libertaram-se e deixaram de ser obras de arte sobre si mesmas; foram perseguindo pequenas migalhas, como Hansel e Gretel.

A tela deveria refletir um filantropo, crente de que se encontrava no caminho certo, conhecedor das suas habilidades psíquicas. Quantas vezes ouvira a mãe dizer o quão talentoso era, antes de lhe entregar o chocolate quente a fumegar com uma mão e acariciando os vergões do rosto com a outra. És especial, meu filho. Um dia, quando cresceres, não serás como o traste do teu pai, que pensa que Deus lhe deu o dom de purificar.

Sair daquele processo de criação era-lhe penoso. Voltar à realidade ainda mais. Só ao pintar se sentia completo, envolvido no misticismo que os olhos procuravam enquanto pulavam alegres entre a fotografia e a tela, que ganhava forma com a réplica.

Estava a começar a pintar o rebordo de uma lágrima quando percebeu que esta não estava na posição correta. Estava descaída. Parecia balançar entre o final da bochecha rechonchuda e o início do abismo, prestes a cair da imagem, complacente com o olhar assustado do modelo.

Fez aterrar a paleta de cores junto de cascas de laranja, tapadas com folhas de um jornal com notícias passadas. Merda! Nunca está como eu quero! Nunca está como eu quero!

Respirou fundo. Contou até dez, entre passos acelerados nos escassos metros que separavam as paredes do estúdio, como tinha visto num programa matinal. De rosto pregado nos pés descalços, olhava de soslaio a tela que permanecia de compostura inabalável sempre que cruzavam olhares. Sabia que, se controlasse a emoção da desilusão, o resultado seria melhor. A obra merecia-o.

Voltou a sentar-se e repetiu o processo. No banco alto e rotativo de madeira, com um pé no chão, aliviou a curvatura das omoplatas dirigidas à tela, um tête-à-tête onde buscava o equilíbrio. Procurou ver para lá da alma capturada naquele momento, e quase juraria que ainda agora lá estava. Desaparecera.

Desceu do poiso e pegou no telefone, com uma mão suada e trémula. Altivo, digitou um número que já sabia de cor.

— Estou?

— Traz-me outro.

— Outro? Não me parece prudente. Muito menos ao cair da noite.

— Pago a dobrar. Traz-me outro. Hoje.

O suspiro não foi suficiente para conter a resposta.

— Dá-me umas horas.

Aguardou ansioso pela encomenda. Para ajudar a passar a angústia do tempo, queimou a tela onde jazia o trabalho incompleto, tirou a fotografia das molas metálicas com as duas mãos e de dedos mindinhos a apontarem para o céu. Fumou um cigarro e, envolvido no cinza da nicotina, sentou-se a escrever uma carta à mãe:

Querida mãe, 

Não sei se o que sinto são saudades suas. Sei que, sempre que penso em si e no quanto estamos afastados, me humedecem os olhos e ganho um friozinho na barriga que me prova que a mãezinha foi real.

Deve estar zangada comigo por ter estado tanto tempo sem lhe escrever. Não se zangue. Sabe que parti em missão e no sítio onde me encontro não é fácil comunicarmos com o exterior.

Sabe, a mãezinha não tinha razão; aqui, descobri que nem o céu é o limite. Todos os dias, trabalho com pequenos anjos que me são enviados por Deus. E, sempre que lhes toco, Ele fala comigo e agradece-me por ter salvado mais uma vida.

Ouvi esta frase no outro dia e lembrei-me de si. Dizia: «O momento mais escuro da noite é sempre antes de o Sol nascer». 

Espero continuar a ser o seu Sol. 

Um abraço do seu filho,

Bruno Amadio

 

O toc, toc, toc soou quando a saliva amornava a lombada do envelope. Do outro lado da porta, a seriedade vinha de fato de linha italiana, mãos calejadas e com algumas escoriações branco-amareladas na pele exposta. O fato não disfarçava tudo o que o homem pretendia. E o braço comprido terminava de mão dada com uma criança. Não tinha mais de cinco anos de idade. Com o corpinho agitado por espasmos, soluçava sem lágrimas.

A porta fechou tão depressa quanto abriu.

— O meu dinheiro?

— Toma. O dobro. Podes contar.

— Este é o último. Vou-me embora. Não quero estar aqui.

— Ainda não podes ir, ajuda-me aqui. Este é especial. Prometo que vou ser mais limpo do que das outras vezes. Já tenho o cinto pronto e tudo; vai ser no pescoço. Eu aperto e tu fotografas. A pele vai ficar com um tom arroxeado, mas isso eu disfarço bem. Só preciso de captar a última lágrima a escorrer até à bochecha. Mesmo no centro da bochecha, antes de contornar a curvinha da maçã.

— E como é que sabes quando vai ser a última lágrima?

— Porque o momento mais escuro da noite é sempre antes de o Sol nascer.

SOBRE A AUTORA

Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho nasce no ano de 1980, em Lisboa. É a quarta geração a residir numa vila lisboeta por onde tantos escritores já passaram. Licenciou-se em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada em 2004, tendo posteriormente completado uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos. É casada e mãe de dois filhos. Da sua família, sacia o amor, a união e a força para os seus projetos.

É nas páginas dos livros que encontra refúgio e será através das suas palavras que procurará deixar um legado. Conta com a participação em várias coletâneas e revistas digitais, enquanto contista. É cofundadora do podcast «Livros a três» e desenvolve um papel ativo em projetos de formação de Escrita Criativa e na divulgação da importância da leitura.