A Menina-Nenúfar

de Raquel Fontão

 

A menina-nenúfar era rasgada no tronco. A sua vida toda com o interior à vista.

Vivia alagada no pântano, bracejando sem tempo naquele espaço infecto.

Pequenos seres abundavam no seu tronco exíguo. Alimentavam-se desta menina, da sua carne, das suas extremidades, numa lentidão misericordiosa, como se assim a prolongassem.

[Tempo]

A menina-nenúfar já não tinha um dos olhos. No seu lugar, uma esfera esbranquiçada flutuava no lodo à sua volta, para lá e para cá, numa dança sonolenta. O cabelo, esverdeado, era do mesmo tom do pântano.

Por vezes, curioso, o seu único olho espreitava um menino, que brincava nas margens da água.

[Estagnada]

A menina-nenúfar não existia só. Era toda uma comunidade. Os pequenos seres, sentados como yogis sagrados, brindavam com copos cheios de um líquido pestilento, no interior do seu ventre rasgado.

O menino, M., observava aquela massa disforme, aquele buraquinho negro que espiava sobre a água, e um cabelo feito de nenúfar bolorento e empastado.

Queria conhecer esta ninfa do pântano, submersa na podridão. Distraía-se com o seu cabelo em forma de nenúfar, espetando, por vezes, o dedinho no buraco negro em lugar de um olho. Porém, sempre que M. mergulhava e fingia ser um anfíbio, deixava de a ver. O resto do seu corpo tornava-se inatingível por debaixo daquele manto verde espessado, e havia uma dificuldade crescente em manter os olhos abertos. Mesmo que os abrisse durante algum tempo, tudo se abafava num aquário de águas esfumadas.

M. não conhecia ainda os seres minúsculos que habitavam a menina-nenúfar. Não tinha ideia do quão belos eram, de quanto o perscrutavam no lodo esverdeado.

Mas eles gostavam dele. Esperavam, também um dia, poder habitar o seu ventre liso de criança. Entrariam pelo umbigo e rasgariam aos poucos a sua carne e beleza infantil.

M. nunca falava enquanto brincava junto ao pântano. Apenas sorria e ria muito das pequenas coisas. Reparou, no entanto, que a menina-nenúfar se ia encolhendo com o tempo. Rompia-se, lentamente, sem se aperceber.

Do único olho que via, ela sorria-lhe, numa esperança desastrosa de esticar os braços que já não tinha e tocar naquela alegria inocente, que também já não lhe pertencia.

A menina-nenúfar foi assim diminuindo, imitando a consistência daquele pântano verdejado que a envolvia como uma mãe. E os pequenos seres de orelhas pontiagudas, sempre atentas, com os rostos afunilados em forma de caveira, sorriam num júbilo lânguido, na esperança de um outro corpo.

A menina acabou por tornar-se num nenúfar flutuante, a pele oscilando na pestilência do palude.

O rapaz, então, sentindo-lhe a ausência, flutuou, com assumida coragem, na sua direção, procurando e acariciando o amontoado cor de pele.

Nunca antes sentira a presença dos seres minúsculos que agora o espicaçavam no ventre, enquanto observava aquele nenúfar desgastado e drenado de cor, confuso com o seu mal-estar.

Mas não viu nada quando saiu da água; quando se vestiu novamente.

Nos dias seguintes, ao passear junto ao pântano, também ele se foi rasgando. Lentamente. Lentamente. Fundindo-se na putrescência. Até se tornar, também ele, um menino-nenúfar.

 

 

SOBRE A AUTORA

Raquel Fontão

Raquel Fontão nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal.

Entrelaçou, desde cedo, os universos da música e da escrita. Estudou saxofone na ESMAE e licenciou-se como professora do ensino básico, com variante de educação musical na ESEP.

Atualmente, trabalha como professora de música e adora escrever todos os dias, transfigurando harmonias em texto. A sua predileção pelo modo menor faz com que o género de terror seja o seu preferido, perseguindo, com gosto, os monstros que a habitam.

Vive no Porto com o seu marido, filhas e as suas duas galinhas.