(A Minha) Sinestesia

De Nuno Amaral Jorge

 

Ser daltónico ajudou muito ao início. Se é que estas coisas têm inícios.

O meu daltonismo era tão intenso que rapidamente se percebeu que se tratava de acromatopsia. O mundo era a preto e branco. Ou quase. Como não sabia bem o que eram as cores de que todos falavam, que constituíam quadros que inspiravam gerações, o mundo das iluminações da retina era um mistério para mim.

Em certa ocasião, quando era miúdo, parti a cabeça. A dor era algo intensa, mas não dei pelo sangue na roupa. Pensei, na altura, que as poucas manchas eram do leite com chocolate que tinha bebido ao lanche, ou uma das inúmeras nódoas que qualquer miúdo saudável tinha pelo simples facto de andar na rua. Quando a minha mãe me viu e gritou, o som disse-me algo que não tinha percebido antes. O grito dela soava a… vermelho? Sim. Por mais estranho que parecesse, era isso mesmo. Um vermelho suave… Mas vermelho.

Como era isso possível? Perceber a cor pelo grito que ela deu? Bom, não só era possível como voltou a repetir-se, mais tarde, numa situação diferente, mas bem mais desagradável.

A minha irmã era mais velha do que eu uns cinco anos. Certo dia, estávamos na cozinha (eu, ela e o meu pai; a minha mãe ainda não tinha chegado do trabalho) e a faca com que ela cortava os ossos de frango escapou e abriu-lhe um lenho profundo na palma da mão. O sangue jorrou como um pequeno fontanário, e o grito dela foi imediato. (Vermelho, tanto vermelho, tão intenso…) O corte foi tão fundo que chegou aos músculos tenares, afectando igualmente um dos nervos ulnares, o que lhe viria a comprometer o uso da mão por largos meses. O odor que saiu da ferida, juntamente com o som, inundou-me a boca. Era algo absolutamente inesperado, até assustador, feito de uma mistura suavemente agridoce, com um toque a sal e metal. Nunca tinha provado nada parecido.

Aquele misto de sensação trocada e confusa, mas, ao mesmo tempo, encaixada num sentido assustadoramente acertado e prazenteiro, assustou-me. Depois, foi bem pior, porque acabou por me viciar. Aquelas sensações, criadas por estruturas que não deviam desempenhar essa função, eram incomparáveis a tudo quanto lia, via ou ouvia. As experiências ditas normais eram tão pedestres, tão pequenas. As luzes do mundo de cores neutras ganhavam cor, e os meus sabores conhecidos multiplicavam-se como se cozinheiros dos deuses resolvessem preparar uma iguaria impossível para um simples mortal.

E depois era o sexo. A sensação estava lá, boa, absorvente, alienante, mas não se comparava ao sabor que me trazia a textura de carne fendida, ou o efeito de tantas cores, como as explosões de verdes e azuis que o som do impacto de pedras pesadas podia produzir.

Procurei por uma explicação para tudo isto, e rapidamente descobri milhares e milhares de páginas. Em toda essa informação, no entanto, nunca tive tanto entusiasmo como ao ler acerca da experiência de Locke, em 1689. Nesta, um homem cego disse que a cor vermelha soava a uma corneta. Assim mesmo. Senti-me como um miúdo, precocemente chegado à puberdade, a descobrir a colecção de livros do Henry Miller numa estante parental. Era, de facto, um mundo novo. Além disso, não estava demente. O alívio foi avassalador, seguido de uma felicidade muito circunscrita, e que jamais conseguiria explicar.

A partir da primeira percepção, a espiral nunca mais parou. Era impossível evitar o desejo daquelas cores, daqueles sabores, aquela entrada de estímulos por portas que não eram destinadas a tais usos. Cheirar com a língua, sentir texturas ao olhar. Era tudo demasiado bom, demasiado intenso e dominador. Perigosamente aditivo, como perceber onde ficava o interruptor para viver.

Cada corte, cada som da pele nas minhas mãos ou do impacto da pedra no crânio era uma viagem em si mesma. Cada um dos gritos era diferente. Cada um dos sons do medo era um toque num local fechado a setes chaves, agora libertado com a raiva de mil desejos recalcados.

Que cor terá o grito?

A que me saberá o cheiro dos tendões expostos e o som da pele rasgada que roça em si mesma?

Será que conseguirei sentir algo nas pontas dos dedos quando lhe cheirar o hálito após a morte? Será que verei alguma cor finalmente?

Bom, ali vem ela.

Vamos ver o que há desta vez.

 

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance, além de bibliófilo. É guionista no projeto de banda desenhada portuguesa Apocryphus, desde a sua primeira edição, em 2016. Em 2018, publicou um livro de contos infantojuvenis chamado A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias, e em breve será publicado um segundo volume de contos, ambos pela editora Ideias com História. Em 2019, publicou um romance chamado As Três Mortes de um Homem Banal,  pela Editora Planeta e, em 2020, participou na antologia de contos na edição comemorativa dos 30 anos da APAV, À Roda de uma Vontade. Em 2022, publicou um conto na antologia Os Medos da Cidade, da Editorial Divergência e pretende acabar um romance que se encontra «a meio», bem como um conjunto de contos de terror e fantástico. Stephen King é a sua referência.