A Renda

de Joana Amores

 

Ricardo apareceu junto à porta da cozinha.

— Bom dia.

— Já viste o tecto da sala? — devolveu Raquel.

— Não me digas que finalmente conseguiste pendurar o candeeiro?

Ela levantou-se. Pousou o café, mas levou o cigarro por acender, revirando-o freneticamente entre os dedos.

— Ali — apontou ela.

No meio do tecto, no centro da decoração de estuque, uma mancha preta. Ricardo aproximou-se para ver melhor:

— Deve ser uma infiltração. Liga ao senhorio.

Raquel saiu, a roer as unhas, deixando-o ali, de mãos nas ancas, a olhar para cima. O cigarro, murcho de tantos apertões, continuava por acender.

Pouco depois, voltou à sala.

— Não atende. Ricardo? Onde é que estás?

No sítio onde antes estava a mancha, agora havia uma boca, rodeada de um negrume que se espalhava como cabelos colados ao tecto. A boca entreaberta deixava escapar vozes baixas, sussurrantes. Falavam do preço a pagar pela casa. A oferenda tinha sido aceite.

A boca fechou-se. O tecto voltou ao seu estado inicial. Perfeito, bonito, retro.

Raquel voltou à cozinha para acabar o café, e acendeu o cigarro. O Ricardo nunca a deixava fumar dentro de casa.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

 

SOBRE A AUTORA

Joana Amores

Joana Amores licenciou-se em Comunicação Empresarial na ESCS, mas a vida encarregou-a de trabalhar com engenheiros informáticos. Almadense de gema com síndrome de Peter Pan, gosta de se refugiar dos assuntos da vida adulta na ficção, especialmente de terror e suspense.