A Ruína

de Marta Nazaré

O medo é um destruidor de esperanças, um ladrão de sonhos. Nos primeiros treze anos de uma vida incolor, o medo, o meu carcereiro, detinha a chave da masmorra onde me encerrava todos os dias. Os sons e os cheiros, os gatilhos do pânico, reuniam-se em conluio com ele quando essa hora se aproximava. O clique da chave na porta ao entardecer. A voz alta e entaramelada do meu pai com um odor acre a álcool. O estalido da bofetada que atirava a minha mãe ao chão quando tentava impedir que ele me voltasse a trancar no escuro. O medo, personificado no meu pai, controlava a minha existência de mármore.

Prisioneira num silêncio impotente, as minhas lágrimas de pedra caíam. A humidade manchava as paredes dos sonhos onde o frio do medo se infiltrava. A hera do desânimo crescia e adensava-se em torno da porta que o calor e a luz não alcançavam. Fissurados pelo avançar do tempo, os pilares do futuro tombavam, um a um, no vazio, e os alicerces da esperança lascavam e enfraqueciam. O meu mundo e eu não éramos mais do que esta ruína abandonada.

Relembro agora o dia da derrocada, o dia em que renasci molhada entre as pernas, manchada por uma revolta vermelha. Percebi naquele instante que, nos escombros de uma vida apagada, a menarca desencadeara em mim um poder sobre-humano. Desta vez, quando o meu pai me quis arrastar para o cárcere, os papéis tinham-se invertido. A força e a raiva dele tinham sido transferidas para as minhas mãos. Quando ameaçou avançar sobre mim, projetei-o para o fosso escuro onde ele me largava e me esquecia, o buraco dos dias que não tinham fim. Nessa mudança repentina, enverguei a máscara de representante do medo, a detentora da chave da porta onde o mundo ruía, o frio se infiltrava e a hera venenosa crescia.

Estou mais uma vez aqui parada, diante do teu túmulo, pai. Diante da porta que nunca se abre e que vê passar os dias de desesperança e as horas de desassossego, numa decomposição triste e esquecida.

 

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.