A Travessia

de Helena Menezes

 

Não carregava o peso do corpo, mas sentia tudo como se pele, nervos e ossos ainda fossem meus, contidos naquela sala branca e vazia. Passei-me penada pela parede. Lá fora, uma terra deserta suportava um céu apocalítico. Quatro pequenas casas toscas, uma em cada direção, esperavam-me. Suava e tremia. Medos. Tudo mental.

Pela primeira janela, observei ratos e pombos num desalinho total de fome atroz, canibal. Pela segunda, vi o meu professor de música nu, a tocar a odiosa melodia na sua flauta. Pela terceira, contemplei as minhas roupas ensanguentadas. Lavavam-se sozinhas num alguidar, divertidas. Pela quarta, chorei com as palavras liquefeitas a gotejar do teto e a borrar folhas espalhadas no chão.

Do ar pestilento de pelos e penas quentes, da flauta, da água ensanguentada, do mar de borrões negros a ondular, um vómito mental começou a invadir a garganta que já não tinha.

Não atravessaria.

Antes o deserto.

 

SOBRE A AUTORA

Helena Menezes

Nasceu em Lisboa em 1981. Licenciou-se, tirou mestrado e trabalhou como bolseira de investigação, na área das Ciências da Paisagem, entre 2007 e 2013, na Universidade de Évora. Paralelamente à escrita científica, foi fazendo incursões na escrita criativa. Arjuna e o Espírito do Tigre (conto infantojuvenil, Ed. Primeiro Capítulo) foi o primeiro livro, publicado no final de 2022. Participou na coletânea 13 Autoras em Vénus (poesia erótica, Ed. Vieira da Silva) lançada em abril de 2023. Iniciou-se na escrita do terror, algo despoletado pela masterclass do Pedro Lucas Martins, visualizada recentemente na formação «Livro em Ação».