A Última Morada

de Tiago Rodrigues

Acorda deitado no escuro. A respiração é‑lhe devolvida por algo à frente da cara. Levanta a mão e bate num tecto imóvel. Apalpa em redor, mas não consegue ir longe. O coração bate enquanto mexe os membros à procura duma saída. Paredes por todo o lado. O cérebro procura por uma justificação. Sentiu‑se mal e alguém chamou o 112. A última coisa de que se lembra é de estar com dificuldade em permanecer acordado, enquanto os paramédicos o tiravam da ambulância. «Merda.» Foi enterrado vivo.

O pânico instala‑se. Bate com força na tampa e grita «socorro!». Bate e bate. Grita e grita. Mas nenhuma resposta. E ele procura uma forma de sair. Procura, nos cantos da caixa onde está embalado, por algo que o permita desprender‑se. Vai encontrando ranhuras, por onde tenta enfiar os dedos, numa tentativa desesperada de abrir a tampa do caixão, mas sem sucesso. Tenta escavar a tampa, na esperança de abrir um buraco pela terra acima, até o cheiro do sangue de unhas descoladas deixar de se sentir e as pontas dos dedos arderem como se os ossos estivessem expostos.

E ele chora. Não quer morrer. Não assim. Impotente. Lembra‑se da mãe que «pelo menos, já cá não está». Lembra‑se do pai, que, depois de enterrar a esposa, enterrou um filho. Lembra‑se da irmã e das miúdas, rezando a quem o queira ouvir que ela não as tenha trazido ao enterro.

E ele ri‑se, mas não sabe porquê. As lágrimas continuam a rolar‑lhe pelo rosto, enquanto o coração bate com tanta força que parece não lhe caber no peito. Como lhe poderia isto estar a acontecer? Como poderia alguém enterrá‑lo vivo? «Filhos da puta.» O desespero tornou‑se em raiva. Voltou a bater e a gritar. Não para fugir, não para pedir ajuda, mas para castigar quem lhe fez isto. Um desejo fútil.

Conforme o tempo passa, acalma‑se. Ainda furioso pelo que lhe aconteceu, decide vingar‑se como pode. Contorce‑se naquela embalagem justa com esforço e vira‑se de barriga para baixo. Quando o desenterrarem, saberão o que fizeram. «Vocês é que me mataram. Nem pensem que me vou embora sem vos fazer saber disso.» Coloca o punho cerrado em frente do rosto e estica o dedo do meio, para ter a certeza de que a mensagem é entendida.

O ar aquece, à medida que aceita o destino. A fadiga começa a mostrar‑lhe memórias do passado. E enquanto o oxigénio se esgota e o dióxido de carbono o tenta adormecer, ele lembra‑se de quando a mãe o levou à feira popular. Que dia feliz. «Vemo‑nos em breve, mãe.»

E as memórias continuam, tão desorganizadas que o desorientam. Lembra‑se do cão, que foi atropelado. Da família, dos amigos, das namoradas, até da escola e dos professores. Memórias que saltam no tempo, sem qualquer narração. Isto até o pensamento escavar uma antiga: a Maria. A doce Maria, que conheceu num baile de Verão. Ele falou‑lhe e convidou‑a a dançar. Beijou‑a, provocando risos suaves e envergonhados. Ofereceu‑lhe boleia para casa. A caminho, encostou o carro para namorar mais um pouco. Deu‑lhe beijos e carícias, contra as palavras dela; que lhe pediam para parar; que lhe pediam para a levar a casa. Ele enfiou a mão nas cuecas dela. Ela gemia nervosa. «Não. Por favor, não.» Mas ele não ouviu. Ou melhor, fingiu não ouvir. Fingiu que ela se estava a fazer difícil. Fingiu que as lágrimas eram teatro. Tirou‑lhe a roupa e usou o corpo dela como se tivesse pago por ele. Não foi sexo, foi masturbação com o auxílio de um pedaço de carne. Deixou‑a em casa e forçou‑se a esquecê‑la, dizendo a si próprio que ela era uma puta, uma e outra vez, até acreditar que o que fez não foi errado.

E antes de perder os sentidos, suspirou: «afinal, quem me enterrou foi o carma».

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945