Acordares

de Miguel Gonçalves

Acordei como em tantos outros dias.
Desorientado.
Mais uma vez, acordava num quarto que me era estranho. Mais uma vez, não me lembrava da noite anterior. Como detestava aquelas brancas que me davam de vez em quando.
Tudo era igual a tantas manhãs que as seguiam: o quarto de motel rasca; a sensação de que algo errado se passara; aquele vazio que rivalizava com uma macabra satisfação.
Isso e, claro, a cama vazia.
Mas não hoje.
A cama, desta vez, não estava vazia. Havia alguém deitado ao meu lado. Perfeitamente quieto e silencioso.
Virei-me.
E vi-a.

Vi o cabelo ruivo e ondulado, a pele branca, os olhos azuis. Uma imagem de perfeição.
Algo, porém, não se enquadrava. Algo que tornava aquela imagem angelical numa composição demoníaca.
Só então me apercebi de que os seus seios perfeitos não se moviam, ao mesmo tempo que os meus sentidos registavam o sangue nos lençóis.
Levantei-me da cama e corri para a casa de banho.

Debrucei-me no lavatório por momentos, de olhos fechados.
Só podia ser uma alucinação. Uma brincadeira. Sabia lá. Mas real é que não era. Não podia estar uma rapariga morta no meu quarto.
Merda.

Merda.

Merda…
Abri os olhos e olhei para o espelho.
Um arrepio percorreu-me. Estava coberto por uma substância seca que variava entre o castanho e o avermelhado. Senti vontade de vomitar.

Abri a torneira do chuveiro com mãos que tremiam e atirei-me lá para dentro. Fiquei debaixo da água pelo que me pareceu uma eternidade, a esfregar o sangue do meu corpo com tanta força como podia.
A água tingia-se de uma cor escura e ferrugenta.
Finalmente, já muito depois de a água correr límpida, ganhei coragem de sair do chuveiro e da casa de banho. Voltei ao quarto. Fiz um esforço para não olhar para a cama.
O que é que eu podia fazer? Ligar à polícia? Seria, com certeza, considerado o suspeito mais provável, mas era também a melhor solução.
Depois de vestir uns boxers, dirigi-me à mesa onde estava o telefone. Ia a pegar no auscultador quando uma voz me surgiu na cabeça.

Deixei-a para ti.

Perfeito. Além de tudo o que estava a acontecer, era só o que me faltava.
Brancas na memória. Uma mulher morta na cama. Não saber como tinha chegado ali e agora ouvir vozes. Era mesmo desta merda que eu precisava.
E novamente:

Deixei-a para ti.

Desta vez, deixei-a continuar.

Ao tempo que tu e eu vivemos uma meia-vida. Nenhum de nós está satisfeito. E o pior é que tu nem da tua meia-vida gostas.
Eu, pelo menos, quando estou a conduzir, aprecio o que faço. Tu só vagueias pela vida, sem saberes o que queres.
EU SEI O QUE QUERO!
Olha para o quarto.
OLHA!
Vê-la deitada na cama?
Nunca a conseguirias ter se não fosse eu.
EU!
Tu és só uma desculpa.
ESTOU FARTO DE DESCULPAS!
O quê? Não aguentas saber que fizeste aquilo à pobre coitada?
Ela até gostou. No Inicio.
Mas não te preocupes. Não foste TU. Fui EU.
Fui sempre eu. TUDO EU!
Também não consegues viver com isso?
Então, tenho uma proposta para ti.
Fazemos assim…

Levantei-me do banco onde me tinha sentado.
Olhei para a cama.
Vesti-me calmamente, sem nunca tirar os olhos do corpo que era ainda mais perfeito em morte do que em vida.
Saí do quarto. Cumprimentei o responsável do motel enquanto me sentava numa mesa manchada e pedia um café e uma torrada.
Bacon e ovos? Sim, porque não? Um sumo de laranja também, já agora.
Porque não?
Depois de tanto tempo a viver os minutos que me eram dados como esmolas, tinha finalmente todo o tempo do mundo.
Podia ter tudo o que quisesse. E o que queria era tudo.
Como era bom estar acordado.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE O AUTOR

Miguel Gonçalves

Miguel Gonçalves nasceu no Porto, Portugal, nos anos 80.
Cresceu com banda desenhada, livros de fantasia e de terror — bem como filmes — e com bandas de rock.
Desde muito novo que escreve, sobretudo para si próprio, e as suas histórias são uma mistura de terror, thriller e serial killers, com algumas delas a aventurarem-se no espectro sobrenatural do terror.
Passa o seu tempo livre a jogar roleplaying games, a ler e a beber café.
É o autor de The Scarecrow Man, que foi publicado na antologia da Dark Pine Publishing e independentemente como minilivro.
Se estiverem no Porto, é provável que o encontrem num Starbucks a ler ou a rabiscar num caderno.