Activação Reticular

de António Bizarro

 

Eu não estou aqui. 

Isto não está a acontecer. 

Activação reticular.

Respiro. 

Fecho os olhos. 

Estou numa praia. De um lado, tenho o extenso areal, do outro, o oceano a perder de vista e a fundir-se com o céu. O cheiro a maresia e a agitação das ondas fazem-me sentir em paz. Sinto a areia escaldante sob os pés descalços. Aproximo-me do mar, atraído pelo seu azul cerúleo, as ondas acariciam-me as canelas. Dobro-me e, com as mãos em concha, deito água fria pelo pescoço abaixo. Refresco os braços e as pernas, o peito e as costas.

— Agora, vou-te arrancar as unhas da outra mão — diz uma voz vinda do céu sem nuvens.

Eu não estou aqui, neste armazém abandonado, longe de tudo e de todos. Isto não está a acontecer. Ainda tenho todos os dentes, todos os apêndices. Não estou a perder sangue dos vários orifícios do meu corpo dolorido.

Fecho os olhos. 

Respiro. 

Mergulho nas águas cristalinas e nado junto ao fundo do mar, rodeado de peixes, como se fizesse parte do cardume. Ao longe, vejo um golfinho a nadar na minha direcção. Não, não é um golfinho, é um torpedo a rasgar as águas com um silvo mecânico. 

Estou de volta ao armazém, onde o meu captor segura um berbequim frente aos meus olhos. 

— Agora, vou-te furar as rótulas.

Tento respirar. 

O barulho prende-me a esta cadeira como uma âncora. 

Fecho os olhos.

Não estou na floresta a ouvir o canto dos pássaros. 

Ouço a ferramenta eléctrica.

O sol não chega a mim, filtrado pelas copas das árvores.

Abro os olhos.

As luzes fluorescentes do armazém magoam-me os olhos. 

— Grita à vontade, ninguém te vai ouvir.

Eu estou aqui.

Isto está mesmo a acontecer. 

As técnicas de visualização que o doutor me ensinou são inúteis. Ter o nosso escalpe a ser arrancado lentamente não é o mesmo que um ataque de pânico. O meu torturador só vai parar quando eu morrer. Ele mesmo me informou desse facto quando acordei atado a esta cadeira. Não adiantou de nada chorar, negociar, suplicar. Pedi-lhe perdão mil vezes, mas isso só fez com que ficasse mais zangado. 

No limite das minhas forças, mudei de estratégia e comecei a provocá-lo, numa tentativa de o enraivecer e de o levar a matar-me de forma mais rápida. Ele não mordeu o isco.  

Tento fechar os olhos.

A electricidade viaja pelos cabos de arranque presos aos meus mamilos e traz-me de volta à realidade.

— A tua dor não é nada, tu não és nada e não mereces nada.

Ele tem razão. A minha dor não é nada, eu não sou nada e não mereço nada, especialmente considerando as coisas horríveis que fiz à filha dele, antes e depois de a matar.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

António Bizarro

António Bizarro é um escritor e músico nascido em 1978, em São Paulo, Brasil, e vive no Barreiro. Entre 2006 e 2021, editou cinco livros de contos, uma noveleta em inglês e um livro de poesia. Em paralelo, lançou seis álbuns de música eletrónica (industrial/ambiental), tendo a sua música sido usada em podcasts, curtas-metragens, documentários e jogos de vídeo. As suas principais influências são os Alice in Chains, o J.G. Ballard e o David Cronenberg.

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