Adoro a Morte

de Patrícia Lameida

 

Adoro a morte. É tão… fácil. E nós, humanos assustados, que tanto a tememos… Chega a ser ridícula a facilidade com que corremos em direção a ela. Patéticos.

Discordas? Bem, hoje o sono está a tardar e não tenho nada melhor para fazer. É mais simples mostrar-te. Acompanha-me e vais perceber o meu ponto de vista.

Descemos à rua. O Chiado, a esta hora, está deserto, mas a diversão não é por cá de qualquer forma. Deixa-me só fechar o casaco, e é melhor fazeres o mesmo, que é sempre fresco de madrugada. Subimos até à Praça Luís de Camões. Aqui, conseguimos perceber a vibração da noite. Senta-te comigo, aos pés da estátua. Nah, os que por aqui estão são dispensáveis. E é um espaço demasiado amplo, ficamos muito expostos. Ouve, fecha os olhos. Percebes de onde vem o som? Sim? É para lá que vamos, onde a decadência dura. Por esta hora, nenhum dos resistentes vai estar sóbrio. Espera. Antes de entrarmos no bairro, cobre-te com o capuz. Isso, bem puxado sobre a cara. Nas sombras, a nossa face é um vazio. Que imagem linda…

Caminhar devagar, sempre. O ritmo da passada, quando é decidido e lento, dá-nos poder, o controlo sobre o rumo que a caçada terá. Não, nada de pressas. Olha o grupo, daqui de longe. Estuda-os. Bastam alguns minutos para identificares o mais fraco, o que facilmente se desgarra do rebanho. Repara… Aquele. Vês o magrito encostado à parede? Sim, o que está a vomitar, esse mesmo. Nada inteligente. Daquela esquina, conseguimos que se esqueça dos amigos num instante, basta aparecer pela rua de baixo. Silenciosos, não deixamos que ele nos veja (para isso, o lixo empilhado por estas ruas é extremamente útil) e, quando ele voltar a erguer a cabeça, estamos a dois passos. Num segundo, está a vomitar; no seguinte, tem um vulto encapuzado à distância de um braço. O ar de pânico! Delicioso. Repara, vai voltar as costas e correr em frente, é um clássico. Raramente estão lúcidos o suficiente para encontrarem o caminho de volta ao bar, que por esta hora é o único lugar aberto. Deixamo-lo correr e observamos. Espera… Uma caçada vive da paciência. Vejamos como ele se comporta… Lá está, virou. Curiosamente, voltam quase sempre à direita. Percebeste em que rua ele virou? Isso, agora é altura de correr. Sempre por uma paralela, a ganhar velocidade. Conseguimos surgir-lhe à frente com um quarteirão de avanço. Ah! O olhar dele. O pânico de novo, ainda maior! Excelente trabalho. Agora, é só continuar atrás dele. Seguros e constantes, postura ereta. Olha para ele, já mal consegue correr a direito. Medo e álcool são uma infusão poderosa. Tão fácil…

Resta encaminhar este cadáver ambulante para o seu destino. Repara, consegues guiá-lo usando a tua posição na rua: se caminhares ao centro, ele irá em frente; se estiveres próximo da margem direita, ele vira à esquerda, e vice-versa. Simples, vês? Para onde? Ah, para onde… Hoje, tenho em mente uma coisa especial, digna do Louvre. Vamos guiá-lo para o Príncipe Real. Sim, para os jardins, o São Pedro de Alcântara. Estás a imaginar o plano?

Os jardins são nossos amigos. Deve ser a proximidade da natureza que lhes dá qualquer coisa de primitivo durante as horas mais escuras. Como treme, o rapaz. Tu continua a caminhar certinho, basta isso. Casaco fechado, face oculta no capuz, mãos nos bolsos e passada segura. Implacável.

O rapaz treme e agarra-se ao gradeamento como a uma tábua de salvação. Perfeito. É só continuarmos a caminhar. Lentos, felinos. Já sobe a grade, vês? Isso mesmo, não paramos.

 

Pelo barulho, não caiu em cima de um carro. Vá, não queiras perder a melhor parte! Baixamos o capuz, que não queremos assustar ninguém, e, com calma, descemos a rua que contorna o jardim. Pelo caminho, avisamos o 112: «Estou? Olhe, não sei o que se passa, mas gritaram! Não é habitual, não durante a semana. Acho que alguém se magoou. Venham, por favor! Onde? No Jardim de São Pedro de Alcântara, moro mesmo em frente. O meu nome? Estou? Não oiço. Sim?».

Feito.

Bem, nem que tivéssemos deixado um alvo ele teria sido mais certeiro. Olha que maravilha! Conseguiu ficar empalado no gradeamento. Belo salto.

Agora? Agora, escolhemos de onde queremos ver o espetáculo.

O som das sirenes acalma-me. Laivos de azul e amarelo iluminam o corpo que se dobra, num ângulo impossível, sobre a grade. O brilho das lanternas acentua o encarnado do sangue que desenhou uma poça disforme no passeio e escorre pelo muro. Um quadro de morte. Belíssimo. A derradeira obra de arte.

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.