Agente Imobiliário

De Lewis Medeiros Custódio

 

Vender casas não é para todos. Não é só ethos, logos e pathos. Não é só persuasão. É preciso construir toda uma noção de confiança, tanto com quem vende como com quem compra. É preciso que eles pensem que estamos do seu lado e só do seu lado. Saber ouvir e deixá-los falar. Ler rostos e interpretar silêncios. Perceber que cartas estão na mão e quando as jogar. Criar a urgência e a necessidade. Enfim, há que ter aquele talento nato para a trafulhice.

Não foi com dificuldade que, pela primeira vez, vesti a roupa de agente imobiliário, embora esta me ficasse mais apertada do que gostaria. Odeio quando a roupa não cai como quero. 

Tinha de estar às 15 h 15 em ponto em frente à casa cuja morada tinha sido cuidadosamente enviada para o GPS do carro da imobiliária. Lá, iria encontrar uma vendedora sénior que me ajudaria com os primeiros passos. Esperava que ela fosse pontual. Tenho uma forte aversão a atrasos.

O caminho até à moradia era ladeado por árvores. Não aquelas árvores que nos fazem sentir estar num qualquer país esquecido dos Balcãs, mas sim aquelas que nos dão a sensação de calma e de estar num pequeno paraíso — algo que todo e qualquer comprador certamente apreciaria. Todos os pormenores são importantes.
Cheguei à moradia precisamente às 15 h. Não suportaria chegar em cima da hora. O mesmo não se pode dizer da vendedora sénior. Enviou uma mensagem para o telemóvel da companhia. Depois outra. E depois outra. E ainda outra. Será assim tão difícil ser pontual? Inspirei fortemente e expirei pelo canto esquerdo da boca.
Após exactamente 46 minutos de atraso, eis que ela chegou. Veio num carro da empresa, com a cara dela estampada na porta em ponto gigantesco — se calhar tinha medo de perder o carro.

Aproximou-se de mim com aquele por demais rasgado sorriso de agente imobiliário. Retribuí a gentileza. 

— Olá, sou a Diana, a gestora. É o nosso novo agente imobiliário, certo? — perguntou ela.

— Sim, estava à sua espera.

— Tive um pequeno atraso — respondeu a gestora, como se um atraso não fosse importante. Nem se deu ao trabalho de explicar o porquê. — É daqui da zona? — inquiriu com outro sorriso ensaiado.

— Sim, sou.

— Então já ouviu falar desta casa.

— Conheço as histórias, sim.

— Pois. É por isso que ela ainda está à venda e com este preço ridiculamente baixo.
Pôs-me na mão um panfleto com o nome da imobiliária, o preço da casa — bastante modesto, devo confirmar — e o número da agência. Admirei-me por não estar lá a cara dela escarrapachada ou o nome em letras garrafais. A impressão do folheto era cuidada, talvez até cuidada demais, mas tinha um horrível erro ortográfico, daqueles que me faziam suspirar, mas que se iam fossilizando entre as pessoas. O verso nada continha.

— Isto vai ser para si uma prova de fogo. É esta a casa que lhe vou atribuir. Esta moradia… Bem, podemos dizer que já lhe conheço todos os cantos. Vamos ver por dentro.
Indicou-me o caminho para a porta com o braço estendido, como se a antiga casa senhorial não fosse gigantesca, e a referida porta não estivesse a menos de cinco metros do meu nariz. Por fora, era magistral e imponente, mas a tinta das paredes exteriores já não tinha vida. A enorme porta ficava ao meio e por debaixo de duas grandes janelas, fazendo com que a fachada parecesse a cara do quadro O Grito.

— Como sabe, não temos de contar aos clientes o que aconteceu aqui — disse, acariciando estranhamente uma das paredes — nem há nenhum artigo específico na lei portuguesa que nos obrigue a contar o que aqui se passou. No entanto, caso nos perguntem se alguém foi assassinado aqui, temos de comunicar tudo o que possa comprometer o negócio. A questão é saber como dizer as coisas — disse, piscando o olho. Duvido que fosse um cisco.

— Aqui, é o hall de entrada. O espaço é generoso, como em toda a casa. Vamos subir primeiro, preciso que veja os quartos.

As escadas gemiam a cada passo, como que dizendo que a senhora deveria pensar numa dieta. Aos chegarmos ao andar de cima, ela expirou, cansada. Lá, encontravam-se duas portas. Ela apontou sem voz para o quarto da esquerda e entrámos. A divisão tinha sido pintada de novo. 

— Só o menciona se lhe perguntarem, mas é melhor ficar a saber tudo. Os primeiros foram aqui. Dois homens entraram pela janela, provavelmente a pensar que não estava ninguém em casa. Enganaram-se. Estava o filho dos donos e a namorada. Para azar dos gatunos, o rapaz jogava hóquei. Pegou no taco e só parou quando as cabeças … Bom, tiveram de as raspar do chão… Vamos ver o quarto do lado.

Segui-a. A porta abriu-se com um gemido lento, a pedir por óleo. 

— E aqui foi o que já deve ter ouvido. Depois de matar a primeira vez, tomou-lhe o gosto. Ele e a namorada traziam pessoas para aqui e espancavam-nas até à morte. Um dia, puseram velas no chão, desenharam pentagramas e esfolaram três ou quatro pessoas vivas. Só que as velas pegaram fogo às cortinas e os bombeiros apareceram. Foi aí que se descobriu tudo. Enfim, foi uma trabalheira para restaurar este quarto — nem imagina! Vamos lá abaixo, tem de ver o quintal.

Descemos as escadas, passámos pela simpática cozinha e pelo WC de serviço, saindo para o extenso quintal, ainda com ferramentas e árvores por todo o lado.

— A polícia encontrou doze corpos enterrados aqui… ou o que restava deles.
A vizinhança insiste que ele matou pelo menos trinta e três. Enfim. Desde que o cliente não pergunte, pode tornar o quintal num bom ponto de venda. Bem bonito, não acha?

— Sim — disse a sorrir, enquanto lhe enterrava um machado na cabeça. — É tão bom voltar a casa.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Lewis Medeiros Custódio

Nascido na paradisíaca ilha de São Miguel, nos Açores, foi aluno do Conservatório de Ponta Delgada, onde aprendeu piano. É licenciado em Línguas Modernas e mestre em Ensino pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, além de ser judoca, guitarrista e fotógrafo. Desde cedo, desenvolveu uma paixão pelo terror e pelo macabro, mergulhando nas obras de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King. A emoção visceral desse universo tornou-se uma obsessão que contagiou todos os meios que consome — da literatura ao cinema, da música aos jogos.

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