Alice

de Ana Rita Garcia

 

Alice não tinha medo dos mortos. Eles moravam-lhe na cabeça. 

Acordavam com ela de manhã. Lavavam os dentes. Tomavam banho. Lavavam o cabelo dia sim, dia não. Punham o perfume de tulipas de que Alice tanto gostava. Depois, saíam à rua, atrás dela.

Seguiam-na de perto, como se fossem a sua sombra. Demoravam-se quando ela esperava pelo autocarro. Acenavam-lhe das janelas dos prédios onde ela não entrava. Não tinha medo porque os conhecia a todos pelo nome. Tinha com eles demoradas conversas em silêncio. Umas vezes, riam; outras vezes, não. 

À refeição, Alice sentava-se sempre numa mesa com cadeiras vazias e insistia para que mais ninguém ali se sentasse. Gritava, barafustava, para que a deixassem sozinha com os seus mortos. Depois, abria um caderno e começava a escrever.

Alice não tinha medo dos mortos. No entanto, os vivos tinham medo de Alice. Não sabiam o que esperar de alguém que dizia ver e conversar com quem já não ali estava. Talvez fosse o medo natural que o ser humano sente das coisas que não compreende; talvez sentissem medo dos apontamentos que Alice tirava durante as suas conversas — talvez fossem recados, missões; talvez fossem vinganças encomendadas do lado de lá. 

Alice sorria, matreira, gingava os ombros, e continuava a acrescentar linhas ao seu caderno.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Foi a ver o mar, na margem sul do Tejo, que cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. A economia nacional obrigou-a, em 2013, a procurar outro país para poder exercer a sua profissão. Trabalhou dez anos como arquiteta em Paris, antes de se mudar para terras escocesas e, no meio destas andanças, compreendeu que, ao ler e escrever na língua de Camões, se sente mais perto de Portugal.