Ámen

de Patrícia Sá

Superbia

Deves levar uma vida humilde. Os teus feitos não são mais do que gotas no imenso oceano que é a vida. Esse brotar alegre e quente não te vale de nada. Não foi nada de mais. Tu não és nada de mais.

Não és nada.

 

Avaritia

Deves ser generoso. Dá a quem menos tem. Não cobices. Sabes o preço da hybris. Essa faísca que um dia flamejou no teu olhar? Apaga-a. Não queiras mais do que mereces. Dá o pouco que és ao teu próximo.

Dá e dá, até nada sobrar.

 

Luxuria

Deves ser casto. Se sentires um líquido elétrico percorrer-te o corpo, sabes que o castigo é justo. Insufla-te apenas de pureza. Sê permanentemente uma tela branca. Não desejes nada. Não és nada.

Pinta-te de tons de culpa.

 

Invidia

Deves praticar a caridade. Ama tudo e todos. Só existes para os teus próximos. Vergasta as costas. Os outros podem ter. Os outros podem querer. Os outros podem ser.

Tu não.

 

Gula

Deves ser moderado. Tempera todos os teus atos de sapiência. Sê uma coluna. Mantém o edifício que é o mundo firme e em pé. Não desejes nada, ou a balança do universo cai. Tu és o centro.

Nada mais.

 

Ira

Deves cultivar a paciência. Lembra-te de que equilibras o mundo nessas costas fustigadas. Mantém o andar firme. Sê a rocha que trava a fúria das ondas.

Aceita o sangue que te escorre pelo corpo.

 

Acedia

Deves ser diligente. Quando só queres desfalecer, sabes que o castigo é merecido. Quando o negro te tinge a visão, sabes que estás errado. A Luz de Deus é brilhante e só não a enxergas porque não queres. Blasfemo. Tens a obrigação de praticar boas obras, de trabalhar por um Pai que não responde. Se questionares esse silêncio, não és digno. E é por não seres digno que só vês nuvens carregadas, que um cansaço pesado te prega o corpo ao chão, que os dias passam e nem dás por isso. Deves continuar, continuar, continuar. Levanta-te, servo! Levanta-te-

 

E levantei-me. Depois de anos a lamber o chão em busca de migalhas, anos de açoites a cada passo em falso, anos a não ser nada, a não poder ser nada, levantei-me.

E, ao afastar-me da igreja que ardia num vermelho vivo e sangrento, pareceu-me ver, pela primeira vez, aquela face divina e odiosa por trás da Lua.

Fitei-a com um único pensamento sólido no meio das manchas e do escuro e da dor:

Ámen.

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Sá

Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.