Amigos Improváveis

de Marta Nazaré

Bastou uma distração e caí naquele túnel escuro onde acabei por morrer. É verdade que o filme da nossa vida nos passa à frente dos olhos no momento da morte, mas a minha existência foi tão efémera que só tive direito a um anúncio.

Tudo começou no dia em que conheci o David e ele me levou para casa. A minha mãe sempre me dissera para me manter afastada das pessoas. Contudo, naquele dia, tal como na hora em que morri, desequilibrei-me e fui aterrar na secretária do David. Distraído com o teste de Português, ele só me viu minutos depois, escondida atrás do estojo, quando foi guardar as canetas. Assim que a Raquel, a colega de carteira, se apercebeu da minha presença inquietante, quis esborrachar-me com o caderno. O menino não deixou. Pegou-me com cuidado e, para meu espanto, disse-lhe que as aranhas traziam sorte e dinheiro, e que não se deviam matar. A menina afastou-se, enojada com a minha aparência peluda. Eu e o David tornámo-nos amigos inseparáveis.

O canto do quarto onde teci a minha teia era o melhor do mundo. Por cima da cama do meu novo amigo, via entrar os raios de sol quando subiam as persianas de manhã. De seguida, o David ia para a escola e eu descansava. Ele regressava sempre com moscas e, enquanto eu me banqueteava, deixava-o fazer os trabalhos de casa. Chegada a hora de deitar, conversávamos até ele adormecer. Como sou noctívaga, aproveitava a noite para arrumar a teia. E foi no instante em que tricotava um fio partido que me voltei a desequilibrar e caí.

Morrer não doeu, pelo menos não fisicamente. Fui invadida por uma mágoa muito mais debilitante do que uma pata partida ou a queimadura solar de uma lupa. O que senti foi uma dor sem consolo. Depois de ter caído dentro da boca do David, a tristeza de o deixar despedaçou o meu coração pequenino de aranha. Quando ele acordasse, eu já não estaria pendurada no canto do quarto à sua espera. Ele ia ver a teia vazia e perceber que a sua melhor amiga ― com quem falava todas as noites, a quem contava o dia de escola e desabafava os problemas de criança, tão pequenos como eu ― tinha desaparecido. Bastou pôr uma pata em falso. Tudo acabou com um segundo de distração.

Enquanto a luz da minha minúscula existência se apagava, tentei conformar-me com o facto de que, pelo menos, faria parte do meu amigo para sempre. Mas era pouco consolo. Dentro de instantes, o despertador ia tocar, e eu partira sem sequer me despedir.

 

(N. da A.): Há um mito urbano que diz que, ao longo da vida, comemos entre 8 a 10 aranhas enquanto dormimos.

 

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o terror infantojuvenil.