Anoitecer

de Ana Rita Garcia

 

Chegam ao anoitecer. Chegam quando apago a luz. Aguardam, pacientes, até me sentirem indefesa. Deitada de bruços na cama, puxo os lençóis cobrindo a cabeça. Escondo-me do que não vejo, mas sei que habita a escuridão. 

Ouço as dobradiças da porta rangerem. Ouço o chão de madeira estalar. Chegaram. Estão aqui comigo. Sinto o colchão ceder sob o seu peso quando sobem para a cama. O terror imobiliza-me. Se não me mexer, talvez pensem que durmo. Talvez não ousem acordar-me. Simulo uma respiração profunda, sem conseguir acalmar o coração. Eles ouvem-no bater, eles sentem-no. Sei que sim. Não gostam de me ver imóvel. Não gostam quando não reajo. Não os satisfaz. 

Sinto-os apoiarem-se sobre as minhas pernas. Equilibram-se primeiro nos meus gémeos, depois nas minhas coxas. O meu ritmo cardíaco aumenta. Sustenho a respiração. Não vale a pena fingir, eles sabem que estou acordada. Sobem para as minhas costas e enterram-me no colchão. São pesados. Não tenho coragem nem força para os tirar de cima de mim. Não consigo respirar. 

Ouço o barulho que fazem quando os seus lábios recuam e os dentes se mostram. Riem. Arrepio-me. Apercebo-me de que deixei uma mão descoberta pelos lençóis. Escondo-a e ouço as suas garras arranhar o pano diante do meu rosto, procurando a mão que já lá não está. Mesmo que quisesse fugir, não conseguiria. Eles mantêm-me imobilizada. 

Sinto as mãos sobre a minha cabeça, enterram-me na almofada. Continuo a não conseguir respirar. Tento pedir socorro, gritar, mas a minha boca não se abre. Faço força com a garganta, forço a voz, mas o que sai é um gemido distorcido, um som incompreensível. Ninguém vai ouvir-me. Ninguém vai ajudar-me. Sou só eu e eles na escuridão outra vez. 

Desespero. Continuam a fazer força. Continuam a rir-se. Não respiro. Choro. Gemo. E eles continuam ali. Preparo-me para o fim. Talvez seja desta vez que me sufocam, que caio no abismo, que não regresso. Desisto de lutar contra a força que não vejo. Deixo-me ir. Deixo-me empurrar. Desarmada, aceito o meu fado, e nesse momento ouço a sua decepção. Talvez não lhes agrade a calma submissa. Talvez prefiram o medo pegajoso. É difícil compreendê-los. Soltam-me. Posso respirar outra vez. Abro os olhos e encontro as tonalidades pastel do Sol que nasce no tecto do quarto. Choro em vez de rejubilar. Sei que estarão de volta ao anoitecer.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Foi a ver o mar, na margem sul do Tejo, que cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. A economia nacional obrigou-a, em 2013, a procurar outro país para poder exercer a sua profissão. Trabalhou dez anos como arquiteta em Paris, antes de se mudar para terras escocesas e, no meio destas andanças, compreendeu que, ao ler e escrever na língua de Camões, se sente mais perto de Portugal.