As Caladas
De Maurício Valentino Borges
No Vale do Eco, as pedras fumegavam mesmo antes de o Sol nascer. A terra estalava com o calor do fim de junho. As cigarras cantavam a pedir chuva. E Aurora, que nunca dissera ou escutara qualquer palavra desde que nascera, escavava.
Tinha dez anos. Frágil, tímida, com olhos cheios de curiosidade e esperança. Desde que a mãe morrera, vivia com a avó, Dona Virtudes, numa casa a desfazer-se, tal como ela.
A velha dizia que a paz era sagrada, que o silêncio era bênção. Mas havia dias em que desejava ouvir a neta quebrar essa quietude — nem que fosse uma vez.
Da janela, viu-a a escavar e correu até ela. Em língua gestual, fustigou-a com gestos duros e zangados. Aurora não entendeu o porquê da tempestade. Pediu desculpa.
Ao longe, surgiu Maciel, amigo da escola — o único que comunicava com ela. Entendiam-se com bichos, sorrisos e longos silêncios de cumplicidade.
Chamou-a para brincar. A avó, aliviada, mandou-os ir.
Fingiram ir para o largo da aldeia, mas desviaram-se sorrateiros, guiados pelos passos firmes de Aurora, até à floresta de sobreiros que cercava o vale.
Pararam junto a um sobreiro velho, de raízes fundas. Aurora voltou a escavar com as mãos. Maciel observava.
Ela abanava a cabeça, em resposta a perguntas que ele não fizera.
Ele tocou-lhe no ombro.
— Estás à procura de quê? — perguntou, gesticulando à sua maneira.
Aurora tirou o caderno do bolso e escreveu:
«Vozes debaixo da terra.»
Maciel riu, sem gozo. Pegou na caneta.
«E dizem o quê?»
Ela hesitou. Depois, alcançou a caneta e escreveu:
«Que se lembrem delas.»
As vozes vinham com o calor, como um zumbido dentro do crânio. As raízes mexiam-se devagar. Os bichos fugiam.
Aurora voltou ao trabalho. Encontrou algo; um osso — um fémur fino como um galho — e um trapo com dentes humanos.
Maciel estremeceu, mas quis parecer corajoso.
«O que é que vais fazer com isso?», escreveu.
Ela encolheu os ombros.
*
Ao entardecer, Aurora regressou a casa.
Virtudes, ao vê-la aproximar-se, coberta por trapos vermelhos e empunhando o longo osso como uma varinha mágica, sentiu o coração a palpitar.
— Ai, Deus misericordioso…
Correu até ela, de mão ao alto como quem vai bater, mas parou. Abraçou-a e benzeu-se. Sabia: já era tarde. O castigo viria. Para todos.
Trancou os objetos numa caixa cheia de sal e queimou-os, mas as vozes não se calaram. Ecoaram na cabeça da idosa. As histórias voltaram, como cadáveres acumulados num poço de mentiras.
As Caladas. Mulheres silenciadas. Acusadas de bruxaria por padres da Inquisição. Não as queimaram — o fogo era espetáculo. Queriam silêncio.
Assim, enterraram-nas vivas pelo vale fora, com trapos salgados na boca, sob raízes de sobreiros recém-plantados. A floresta cresceu sobre os ossos delas. A aldeia assentou num túmulo coletivo de vergonha.
Os padres chamaram-lhe purificação. O povo chamou-lhe o Calar. Diziam que, se alguém as viesse a escutar de novo, voltariam. Não com palavras. Com escuridão.
*
Era noite de São João, com fogueiras vivas e vinho a fluir. Maciel foi bater à porta de Aurora. Encontrou a avó em pânico.
— Ela desapareceu. Ai, Jesus. Estamos perdidos!
Maciel olhou-a nos olhos.
— Eu sabia que não devíamos ter feito aquilo.
Virtudes estremeceu.
— O que é que vocês fizeram? Onde é que andaram a fazer asneiras?
O rapaz quase chorou.
— Ao pé do sobreiro velho. Ela disse que as ia ajudar.
Virtudes olhou para Maciel, que a observava a soluçar.
— Leva-me já a esse sítio!
De mão dada, correram até à floresta. Encontraram a menina no centro de quatro grandes covas, dispostas em cruz. A mão estava pousada num pequeno esteio de pedra rachada. Viam-se-lhes as mãos manchadas de sangue à luz da Lua; o corpo coberto de terra.
Ela virou-se. Os olhos… não eram de criança.
— O que foste tu fazer?! — gritou a avó. — Deus, não me tires também a minha pequena!
A terra tremeu.
E elas subiram.
Sem som. Secas. As Caladas eram sombras esqueléticas, de bocas costuradas, com olhos tapados por raízes. Os dedos moviam-se como se lessem o ar. Subiam juntas por aquela «porta» em forma de cruz, com a calma de quem esperou séculos. Uma a uma. Dezenas.
Virtudes correu até à neta e abraçou-a.
— Temos de fechar a terra! Maciel, ajuda-nos!
Mas uma voz estranha saiu do corpo de Aurora:
— Porque deixaram que nos enterrassem?
— Nós? Os nossos antepassados… Eles tinham medo de ser julgados como vós, enterrados ao vosso lado — chorava a avó. — Que culpa temos nós?
Silêncio.
As Caladas passaram pela criança, ignoraram-na.
Desceram para a aldeia.
*
Os cães uivavam. As Caladas desciam a ladeira, uma procissão de vingança.
Maciel correu até à praça. Tocou o sino com força.
— Fujam! Escondam-se! Elas vêm aí!
Mas os adultos riam-se. A festa continuava.
As Caladas entraram sem ruído. Passaram sombra a sombra. Porta a porta. Viela a viela. Tiraram primeiro a voz. Depois, os olhos. Os corpos foram deixados sem nada. Justiça antiga. Silenciosa.
*
Com os primeiros raios de sol, tudo estava quieto.
As Caladas voltaram às covas. Afundaram-se na terra.
Aurora encontrava-se junto ao sobreiro antigo. Sozinha. Chorava sem som, de olhos fixos no corpo da avó.
A sua boca tremeu.
— Porque é que não me levaram também? — sussurrou, com voz fraca. As suas primeiras palavras.
As raízes do sobreiro mexeram-se. Desenharam na terra:
«Porque nos ouviste.»
Aurora respirou fundo, sentiu o sol quente na pele.
Baixou-se sobre a terra. E começou a tapar as covas.
SOBRE O AUTOR
Maurício Valentino Borges
Natural de Braga, é formado em arquitetura pela Universidade do Minho. Sempre teve um amor pela criação de mundos e das suas histórias, o que o levou às suas paixões principais: a banda desenhada e o cinema.
Desde 2019 que trabalha na indústria cinematográfica independente portuguesa, no departamento de arte e no de realização e escrita, perseguindo de forma cada vez mais ativa e ambiciosa projetos de maior escala.