Auto-retrato

de Cláudio André Redondo

 

Consigo ver bem a minha cara, mas não gosto do ângulo. Inclino o espelho um pouco mais para a direita. Está melhor, mas longe de perfeito. Tento pintar o rosto que vejo, o resultado enerva-me. A forma daquela cara não faz sentido, não é simétrica, não fica bem. Odeio o que vejo. Volto a virar o espelho, inclino-o mais para cima, mais para baixo, para a esquerda, direita. Arrasto-o de um lado ao outro da secretária, mas a imagem que me devolve é sempre uma que só consigo detestar.

Tento pintar o que vejo, sem sucesso. Sou um fracasso. As lágrimas caem molhando as tintas na paleta. Quando dizem que todos os grandes artistas devem ter um auto-retrato, deviam referir quão difícil é cumprir essa tarefa para alguém como eu, alguém com um rosto como o meu. Se me tivessem dito, nem teria tentado.

Malditos sejam!

Odeio-os!

Sugerem isso porque têm rostos belos, memoráveis.

Pego no espelho com ambas as mãos e bato com ele na bancada. O espelho racha-se em vários pontos. Olho a imagem que me é apresentada — um rosto cortado em várias partes; perfeito. Apresso-me a pintar o que vejo. As mãos tremem, todo eu tremo. Perco a noção de tudo. De onde estou, do tempo, chego mesmo a esquecer-me de quem sou. Os meus braços mexem-se sozinhos, controlados por uma força invisível. Até que param. Param para contemplar a sua obra.

Na tela à minha frente, está o meu auto-retrato. Sem dúvida, a obra de um grande artista, a real representação de quem eu sou. Uma daquelas imagens que será adorada muito para lá da minha morte. Que será usada para me recordar.

Estou cansado, dirijo-me para a cama. Olho de relance para o espelho do quarto e assusto-me com o que vejo. Quem é aquele estranho que me observa? Demoro alguns segundos até perceber que sou eu. Estive tantas horas a pintar o meu quadro, a minha reprodução perfeita, que me esqueci de como realmente sou. O reflexo olha-me como uma memória distante, escondida no meu passado. Aproximo-me do espelho e toco ao de leve naquela face. Relembro o meu quadro. Não está certo! Aquele não sou eu! Preciso igualar a vida à arte! Pego numa tesoura e aproximo-me do espelho.

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Cláudio André Redondo

Apaixonado por livros, música, cinema e videojogos, foi-se aventurando por essas áreas à descoberta de novos mundos e formas de se exprimir. Sente no terror o conforto daquela mantinha que nos aquece nos dias frios, e começou, recentemente, a tirar contos do género da gaveta. Espera brevemente tirar outras histórias, filmes, videojogos e músicas. Resta saber que figuras e lugares sombrios o acompanharão.