Banshee
de António Bizarro
Alice tinha treze anos quando viu a Morte pela primeira vez. Estava a debulhar feijão no quintal e viu o espectro a rondar a casa da família, envolto em dois mantos, um que o cobria da cabeça aos pés, deixando apenas a descoberto o rosto descarnado, e outro feito de pestilência. Fugiu para dentro, assustada, e falou à mãe da aparição, mas ela não a levou a sério, chegando a ralhar-lhe para que se deixasse de lorotas. Nessa noite, o pai de Alice morreu, fulminado por uma apoplexia.
Desse dia em diante, Alice voltaria a avistar a Morte na sua patrulha sinistra em redor de outras casas na aldeia, e de todas as vezes correra em pranto para contar à mãe o sucedido. Sempre que a via, alguém morria durante a noite.
A mãe, perante os factos, foi forçada a relacionar as visões de Alice com o falecimento das gentes da povoação, pelo que pediu conselho à sua vizinha e amiga, que lhe recomendou levar a menina ao padre. A única coisa que o clérigo se propôs a fazer foi rezar para que ela deixasse de ser atormentada pela sua imaginação, argumentando que era muito improvável que Alice tivesse a capacidade de profetizar a morte de quem quer que fosse.
Pouco tempo depois, toda a gente já sabia do dom sobrenatural da pequena, mercê da alcoviteirice das beatas mais supersticiosas. Uma turba ululante juntou-se assim à porta dela, empunhando archotes, foices e forquilhas. Gritava-se que ela tinha um pacto com o Diabo e que, mais do que pressentir, conseguia invocar a Morte sobre os vizinhos. Tê-la-iam matado, não fosse o pároco lembrar que existia um sexto mandamento e uma obrigatoriedade da sua observância. A população exigiu então que a criança fosse banida para longe da aldeia.
Homens, mulheres e crianças escorraçaram-na aos berros, cuspindo-lhe em cima e atirando-lhe pedras, até Alice, de coração partido e corpo martirizado, se refugiar na montanha que se erguia nos limites do lugarejo. Lá, encontrou uma gruta que se tornou no seu novo lar. Aprendeu a alimentar-se de frutos silvestres e pequenos animais que capturava com armadilhas improvisadas. Numa das encostas, o degelo revelou o cadáver de um lobo e, depois de alguma paciência e esforço, conseguiu aproveitar a pelagem do enorme canídeo para se proteger do frio. Saciava a sede junto à nascente do rio que descia a montanha e atravessava o povoado, e, no tempo quente, banhava-se nas suas águas límpidas.
Sempre que podia, a mãe de Alice, por norma a desoras, subia a encosta da montanha para lhe levar comida, roupas, mantas e objectos que lhe pudessem ser úteis, e contar-lhe as novidades da aldeia, para que ela não perdesse o contacto com o mundo dos homens e a sua humanidade. De todas as vezes, consumida pela culpa, pedia perdão a Alice por tê-la condenado a uma vida de eremitagem. E de todas as vezes, a filha o concedia.
Alice deixou para trás a infância e a adolescência, e assim levou, isolada da comunidade, uma existência ascética, sendo que os aldeões não ousavam perturbá-la no seu retiro montanhoso, com os corações cheios de um temor nutrido pelo crescimento da lenda que rodeava a criança agora adulta.
Alice, da sua caverna, tinha uma vista privilegiada sobre a povoação, pela qual não sentia senão mágoa. A Morte, por sua vez, parecia fazer questão de se mostrar a ela quando surgia para reclamar a alma de mais um aldeão, como se soubesse que Alice podia vê-la e a tivesse, por isso, escolhido como seu arauto. Sempre que a avistava, Alice soltava uma barragem de uivos agudos e prolongados, que podiam ser ouvidos a grande distância, e regozijava-se com a certeza de que os habitantes da aldeia, nessa noite, iriam para a cama aterrorizados, pela agonia de não saberem se estariam vivos na manhã seguinte.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
António Bizarro
António Bizarro é um escritor e músico nascido em 1978, em São Paulo, Brasil, e vive no Barreiro. Entre 2006 e 2021, editou cinco livros de contos, uma noveleta em inglês e um livro de poesia. Em paralelo, lançou seis álbuns de música eletrónica (industrial/ambiental), tendo a sua música sido usada em podcasts, curtas-metragens, documentários e jogos de vídeo. As suas principais influências são os Alice in Chains, o J.G. Ballard e o David Cronenberg.
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