Bichinhos

de Santiago Pérez Isasi

 

«Querido… estou grávida», disse-lhe a mulher.

Vários meses antes, tinham encontrado uns bichinhos pequenos na farinha, negros, cheios de patas. Tiveram de deitá-la fora, junto com o açúcar e o arroz, que já estavam também invadidos de bichos. «E o feijão?», perguntou ela. «O feijão não, o feijão está limpo.» «Tens a certeza?», perguntou ela. «Tenho». «Tens mesmo?» «Sim.»

Uns dias mais tarde, prepararam uma feijoada; já se tinham esquecido do incidente com os bichinhos. No entanto, quando estavam a comer, ele notou algo crocante nos dentes. Retirou-o com os dedos para examiná-lo: era o cadáver de um dos bichinhos. Ela teve tanto nojo que não conseguiu continuar a comer, mas ele, por teimosia e orgulho, limpou o prato.

Após uns dias, acordou com comichão na garganta. Foi até à casa de banho, pigarreou, tossiu, cuspiu. Lá estavam eles: dois bichinhos pretos a mover-se pelo lavatório branco. Que estranho, foi o seu primeiro pensamento. O segundo foi que nunca, nunca, nunca ia contar isto à mulher.

Dois dias depois, encontrou um bichinho entre a cera dos ouvidos; três dias depois, saiu-lhe um bichinho pelo canto do olho. Uma semana mais tarde, mijou uma fila inteira de bichinhos que quase o fizera chorar de dor.

Nessa noite, a mulher quis fazer amor; há muito tempo que não tinham relações íntimas. «É porque já não gostas de mim? Já não me achas atraente?», perguntava ela quase em lágrimas. Ele ponderou as suas hipóteses: inventar uma desculpa, dizer a verdade, fazer como se nada se passasse. Acabou por decidir seguir a frente sem dizer nada. Realmente, que mal é que podia haver?

 

*Conto originalmente publicado (em espanhol) no volume Imposibles Impensables (Nazarí, 2016). A tradução para português é da autoria do autor.

SOBRE O AUTOR

Santiago Pérez Isasi

Santi Pérez Isasi é professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É autor dos volumes de contos Ilustre Ruritania Ilustrada (Ediciones Bárbaras, 2015) e Imposibles Impensables (Nazarí, 2016). Traduziu para a editora La Umbría y la Solana os romances O Caminho Imperfeito, de José Luís Peixoto, e Adoecer e Lillias Fraser, de Hélia Correia. É também um consumidor constante de terror, seja em formato literário ou audiovisual.