Bloqueio de Escritor

de Miguel Gonçalves

‘— Pára! — disse o homem. — Não vale a pena fugir. — A voz era calma enquanto corria atrás dela. — Podes correr o quanto quiseres… Podes esconder-te onde quiseres… Mas, mais cedo ou mais tarde, vais ter de parar ou sair do teu esconderijo. E sabes que mais? Quando o fizeres, eu vou estar lá à tua espera.’

 

Isto era tudo o que Harry Donovan tinha escrito do seu novo romance policial.

Após o sucesso astronómico do seu primeiro livro, Noites Sangrentas, onde um polícia com múltipla personalidade se perseguia a si mesmo após o assassinato de três mulheres em Nova Iorque, a sua editora tinha insistido para que Harry produzisse um novo bestseller.

Harry tinha argumentado, tanto ao seu editor como em várias entrevistas e conversas informais em festas, que precisava de tempo para se afastar do perfil psicológico do «herói» do livro anterior, para recuperar as forças depois de lidar com um personagem tão forte como o Detective Andrew Stevens.

As desculpas já duravam há mais de seis meses, e este parágrafo tinha sido o melhor que Harry tinha sido capaz de escrever. Na verdade, era tudo o que tinha escrito desde então.

Numa noite chuvosa, há três meses, Harry tinha acordado com esta imagem na cabeça.

Um beco pouco iluminado, um homem alto com uma gabardina castanha a pronunciar essas palavras, uma mulher escondida nas sombras.

Levantou-se imediatamente e foi ao computador e dactilografou furiosamente essas palavras.

E depois, mais nada.

Todos os dias, sentava-se, ligava o processador de texto e olhava fixamente para a página quase em branco e para aquelas míseras linhas com uma chávena de chá na mão. Observava o cursor a piscar durante horas. Depois, num acesso de raiva calma, levantava-se e desligava o computador, saía de casa e voltava tarde na noite. Por vezes, bebia, mas regressava a casa sempre mais frustrado do que quando tinha saído. Afinal, continuava sem escrever.

Quando o editor ligava, dizia-lhe que o livro era uma obra em progresso e que em breve teria algo para ele. Nesses dias, era certo que Harry acabaria por beber.

 

***

 

Harry tinha passado mais uma tarde a olhar para o ecrã.

Como em todos os outros dias dos últimos meses, levantou-se e preparou-se para sair. Olhou pela janela e viu os ramos das árvores a ondular.

Pegou na gabardina pendurada atrás da porta e dirigiu-se ao seu bar preferido. O passeio era longo, mas sempre lhe arejava a cabeça. Harry esperava que isso lhe trouxesse ideias sobre como continuar o livro.

Chegou vinte minutos depois. Pediu uma cerveja e um hambúrguer ao balcão e sentou-se numa das mesas no final do bar, de onde podia estudar as pessoas que entravam.

Comeu o hambúrguer e pediu outra cerveja, enquanto rabiscava no caderno que trazia sempre no bolso. Mas, como era habitual, não conseguia ter ideias coerentes.

Deixou o bar agarrado à gabardina e começou a fazer o caminho para casa. Após dez minutos, cruzou-se com uma mulher, que seguia na direcção oposta.

Continuou a caminhar sem se aperceber de que tinha voltado para trás. Entravam agora numa parte escura da cidade, onde becos se separavam da rua principal, como capilares de uma artéria.

À frente, a rapariga tinha começado a acelerar o passo. Inconscientemente, Harry fez o mesmo.

Reparou que ela olhava diversas vezes sobre o ombro na sua direcção, e que acelerava o passo cada vez que o fazia. Harry surpreendeu-se ao notar que também ele se apressava para acompanhá-la.

Quando a rapariga começou a correr, não ficou surpreendido por se ouvir dizer as palavras que tantas vezes tinha visto no ecrã do seu computador.

 

***

 

Ao chegar a casa, foi à casa de banho e vomitou até não ter mais nada no estômago. Depois, tomou um duche, sentou-se à secretária e escreveu até ao amanhecer.

Quando terminou, levantou-se e foi ao quiosque da esquina para comprar o jornal, como fazia todos os dias. O velhote da banca comentou algo sobre «o que aconteceu à pobrezinha», antes de virar as costas para atender outro cliente.

De volta a casa, Harry folheou o jornal até uma manchete lhe chamar a atenção.

 

«Jovem de 21 anos morta em beco enquanto se dirigia a casa após o trabalho: polícia afirma não ter qualquer pista sobre o agressor»

 

Um breve sorriso surgiu no rosto de Harry. Pela primeira vez em meses, não ligou o computador durante o dia.

Ao final da tarde, dirigiu-se à paragem e esperou pelo autocarro. Desceu na periferia da cidade, onde seria difícil reconhecerem-no e caminhou até encontrar um bar.

Depois de comer algo, saiu e começou a andar pelas ruas.

A noite já ia alta, mas para ele era o momento certo. O momento de começar a escrever um novo capítulo.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Miguel Gonçalves

Miguel Gonçalves nasceu no Porto, Portugal, nos anos 80.
Cresceu com banda desenhada, livros de fantasia e de terror — bem como filmes — e com bandas de rock.
Desde muito novo que escreve, sobretudo para si próprio, e as suas histórias são uma mistura de terror, thriller e serial killers, com algumas delas a aventurarem-se no espectro sobrenatural do terror.
Passa o seu tempo livre a jogar roleplaying games, a ler e a beber café.
É o autor de The Scarecrow Man, que foi publicado na antologia da Dark Pine Publishing e independentemente como minilivro.
Se estiverem no Porto, é provável que o encontrem num Starbucks a ler ou a rabiscar num caderno.