Bravo!
de Miguel Santos Teixeira
«Bravo!»
«Bravíssimo!»
«Magistral!»
«Uma obra-prima!»
Findo cada concerto, em cada um dos auditórios e salas de espectáculos por todo o país, continente, globo.
Nos dias seguintes, em cada jornal, em visíveis parangonas.
As adjectivações faziam justiça à última peça para piano do maestro Brino Ena. Arrebatadora, nivelando-a por baixo. As salas esgotavam, as multidões deliravam, a resposta era uma crescente euforia que tomava de assalto cada coração. Percebia-se que o mestre compunha cada nota como se a sua vida delas dependesse, como se cada uma fosse o ar que lhe permitia existir, brotando das suas mãos sobre as teclas num outro plano mais elevado, num abandono terrestre a que se entregava em cada actuação.
Em casa, era ao filho ainda jovem, mas já com notórias aptidões para seguir as pisadas do pai, que ia passando o testemunho. E ele aprendia. Dotado de uma técnica incompreensível para a sua idade, o pequeno Joshua bebia cada nota, cada detalhe, cada sopro de vida que lhe oferecia o pai.
Certo dia, porém, quando o casal regressava de um jantar entre amigos, o impensável aconteceu. Uma curva mais apertada, o piso molhado, um segundo de distracção. O embate, a dor, o apagão.
Só no hospital, após recuperar de vários dias em coma, o maestro soube que a sua amada perecera — na hora, sem dor ou entendimento do seu derradeiro suspiro. Pobre Joshua, pensou. Mas nem uma lágrima verteu pela sua Gisela. Nem uma.
A vida seguiu, a partir de então a dois. Partilhavam agora uma existência discreta, quase exclusivamente passada no lar ainda mais amplo, mas tão sufocante também. A mulher, a mãe, era tudo para ambos. A sua ausência era uma dor que não desaparecia, que incomodava, que não dava tréguas.
Em sua homenagem, o maestro iniciou um conjunto de obras para piano que contava com a colaboração do coração também partido de Joshua. Dois corações despedaçados, pensava ele, verteriam muito mais sentimento em cada nota. Gisela teria assim a gratidão dos dois colocada em música. Os sons seriam as suas lágrimas, a sua despedida.
Foi preciso um ano e meio de quase total clausura para que a obra estivesse terminada. Ninguém, nem mesmo o seu agente, teve o privilégio de uma audição prévia e integral do trabalho. Era essa a condição.
A obra consistia de uma hora e quarenta e cinco minutos de puro êxtase, numa apresentação única e exclusiva, a mesma que anunciava o fim da carreira do maestro, mas também o início de uma outra, nas mãos daquele que lhe haveria de seguir as pisadas. Todos vibravam com o momento de poderem voltar a deliciar-se com o seu génio musical, nem que fosse por uma última noite.
A sala cheia, a ovação de pé, o silêncio que acompanhava o declinar das luzes. Nada de novo. A excepção era a de nunca antes ter partilhado o palco. E hoje, a seu lado, o próprio filho, um prodígio. Dois pianos, um concerto a quatro mãos, a dois corações em dor, cada nota como sangue que vertia de uma ferida aberta. A cumplicidade, a sintonia perfeita no desempenho, na actuação. Nem um olhar fora trocado, nem um gesto ou indicação. Tudo fora perfeito da primeira à última nota.
Findo o tributo, um imenso manto negro desceu sobre a audiência. Ninguém se levantara, ninguém abandonara o seu lugar, ninguém ousara um aplauso. Um silêncio de morte irrompera por aquele espaço e nele fizera prevalecer a sua força, o poder de subjugar cada seu vassalo à dor, à vontade de a partilhar e dela morrer, como quem morre por amor. Assim, inevitavelmente, os espectadores foram morrendo. Uma sala, antes ornada de som, era agora tomada de almas, libertas dos seus invólucros vazios e tombados em cada cadeira.
Sem questionarem, pai e filho abandonaram a sala, agora sim, em paz.
Para ti, terna Gisela. Eternamente nos nossos corações.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Miguel Santos Teixeira
Data de 24 de fevereiro de 1966 a sua primeira aparição neste planeta. O mesmo que haveria de assistir ao seu crescimento no campo das Letras, numa primeira fase na área da Comunicação, enquanto redactor publicitário, vulgo copywriter, e, desde que se lembra, como romancista, prosador, poeta, u name it. Muitos concursos, alguns contos selecionados pelo caminho, alguns livros editados e uma vontade sempre crescente em deitar cá para fora o que não cessa de lhe surgir na cabeça. Diz que é criatividade. Que seja, desde que alguém goste.