Caim no Eiral
De Inês Videira
No fim do verão de 1963, Abel voltou à aldeia de Santa Ágata do Eiral, depois de ter passado os últimos três meses na cidade vizinha, servindo às mesas na esperança de trazer para casa mais algum dinheiro. No entanto, não veio sozinho.
Apenas uma semana depois de ter chegado à cidade, num pequeno arraial, Abel conheceu a jovem Maria Rita, apaixonando-se à primeira vista. Depois dos três meses de namoro, o mancebo voltava à terra para preparar o casamento, trazendo no pequeno carocha branco a sua noiva.
Assim que desceu do carro e pisou o chão daquela aldeia, Maria Rita chamou a atenção de todos os que ali moravam. Loira, muito branca e com mãos delicadas, foi alvo de críticas e olhares atravessados de todas aquelas mulheres que trabalhavam na terra de sol a sol. Era uma mulher da cidade, mimosa, que usava saias justas, arrancava os pelos do rosto e das pernas, e era inútil para a agricultura. Provavelmente, só saberia sacudir tapetes.
Contudo, o irmão de Abel, Rufino, olhava para a cunhada não como uma boneca inútil, mas como um pequeno tesouro. Tornara-se muito amigo de Maria Rita. Ela era uma joia rara que precisava de ser protegida.
Várias foram as vezes em que a mãe lhe pregara o nono mandamento, «não cobiçarás a mulher do próximo», sobretudo quando o próximo é o teu irmão, Rufino, ganha juízo, ia avisando a D. Rosário.
Um ano passou, e Maria Rita deu à luz um menino e, dois anos depois, uma rapariga. Com dois filhos, deixou de poder ajudar nas lidas do campo — ainda que já antes ajudasse pouco. A mulher ficou assim praticamente confinada à sua casa, pelo menos até a bebé ser maior. Foi também nesse ano que, já viúva há muitos anos, a D. Rosário abandonou o mundo dos vivos, vítima de uma pneumonia.
Rufino viu, finalmente, a sua oportunidade.
Numa tarde de sol, tomando para si a tarefa de recolher lenha, foi até um dos pinhais que recebera em herança do falecido pai.
Então? Tens tomates para o fazer?, ouviu numa voz indistinta, trazida pelo vento.
Rufino olhou para o machado.
Há anos que esperas pelo momento certo. É agora.
Sem responder à voz, fez o machado descer sobre a perna. Depois, gritou «acudam!», enquanto o sangue lhe ensopava as calças. Foi ajudado por um vizinho que por ali também andava e que o levou para o hospital.
Por pouco, não cortara uma veia que o matasse. Levou pontos e teve de ficar quieto uma semana. Ainda bem que tinha a cunhada em casa, para tomar conta dele.
Maria Rita sorriu, como sorria sempre, ao aceitar em casa o irmão do marido. Afinal, tinha sempre sido amigo dela, mesmo quando o resto da aldeia não o era. Ajudava-o a levantar-se, ele brincava com o menino, esperavam por Abel para fazer as refeições. E uma semana passou rápido.
No dia em que a enfermeira passou em casa para lhe tirar a maioria dos pontos, Rufino sentiu-se um homem novo. Durante toda a semana, foi agradável e uma boa companhia, ao contrário do irmão, que mal parava em casa, porque se sabia que andava a pôr o pé em ramo verde com uma outra mulher, também casada, alguém os tendo visto entre as canas à beira do rio, ele com as calças baixas e ela de saias levantadas. Não merecia a Maria Rita.
— Obrigado pela ajuda, cunhada. És uma mulher muito boa.
— É o meu trabalho, Rufino. Não podia ser de outro modo — respondeu ela, sem levantar os olhos da loiça que lavava.
Olhando para o sol a bater no rosto pálido daquela mulher, Rufino não resistiu. Empurrando-a violentamente contra a bancada da cozinha, abraçou-a e beijou-a, como um animal sedento que finalmente encontra um riacho.
Maria Rita lutou contra o abraço do cunhado, mas ele era demasiado forte. Gritou.
Cala-a! Ela não sabe o quão bom podes ser para ela! Ensina-a!
A voz de novo.
Nesse momento, a porta abriu, deixando entrar Abel.
— Meu cabrão! — E ergueu a enxada que trazia ao ombro contra o irmão. Não teve, porém, tempo de a fazer cair sobre a cabeça dele, pois Rufino foi mais rápido, agarrando uma faca do lava-loiças e golpeando o ventre de Abel.
Maria Rita gritou novamente.
Na parede, a sombra de Rufino transformou-se, aumentou de tamanho, ocupando a casa toda, enquanto o homem, empunhando a faca, começou a subir as escadas a passo largo.
— Os meus meninos! Por favor, não! — lembrou-se Maria Rita, percebendo o perigo, mas Rufino continuou.
— Não precisas deles. Vais ter mais comigo. Vai ser como se nunca os tivesses parido.
Maria Rita estava paralisada, vendo o marido estendido no chão, numa poça do próprio sangue, que só aumentava de tamanho. Foi então que um gritinho fino fez com que o seu espírito se incendiasse. A tremer, pegou na enxada de Abel e subiu.
A primeira coisa que viu, no berço, foi a sua bebé de poucos meses. Ainda chorava. Rufino olhava para ela. Na mão, a faca pingava sangue da outra criança, no chão estendida ao seu lado, com o rostinho gordo e ainda corado encharcado em lágrimas.
Maria Rita ergueu a enxada e deixou-a cair sobre a cabeça de Rufino. Ainda assim, não o matou logo. Teve de investir de novo. E de novo. E de novo.
Só ao fim do dia é que a vizinha bateu à porta, para perguntar a Maria Rita se ela queria ovos, porque os tinha a mais, tendo encontrado Abel, morto, estendido no chão da cozinha. A polícia veio depois, descobrindo o cenário tal como ele estava: o menino morto no quarto; Rufino, com metade do rosto desfeita à força da pancada; e Maria Rita, pendurada pelo pescoço, com um cinto preso à trave do teto.
No berço, a pequena Custódia chorava, com fome e a fralda por trocar, alheia à crueldade do mundo, e ao espetro tenebroso que a velava, desfigurado.
SOBRE O AUTOR
Inês Videira
Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.
Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.