Cama de Noiva

de Patrícia Lameida

 

Chamam-lhe cama de noiva. Fazem-na com o exagero das partidas que se pregam aos amigos, levando a que as suas potencialidades nunca tenham sido verdadeiramente testadas… mas eu apurei a técnica.

Na primeira semana, os efeitos eram pouco notáveis: uma resposta mais aguda, a voz ligeiramente arrastada, o habitual feitio de esclavagista. Porque não há outra forma de descrever a senhora.

Em setenta anos de vida, nunca trabalhou uma hora que fosse. Montada na riqueza que lhe deram com o nome, construiu uma carreira em torno da manipulação alheia, temperada com requintes de malvadez. Pagou os estudos à filha da criada só para me cobrar os custos em anos de serviço. Megera, matou a minha mãe de desgosto e prende-me sob regras que inventa como lhe apetece. Vigia o que como (se comer demais, acrescento à dívida), com quem saio (se chegar tarde ou sair cedo, acrescento à dívida), o que visto (se vestir fora da minha condição, acrescento à dívida).

Na segunda semana, largou o sorriso com que me infernizava a vida. Deixou de adoçar a malícia e tornou-se mais velha, amarga e de maldade explícita. Sentir que lhe fugia o controlo era delicioso. Então, continuei. Todos os dias, a mesma receita: colchão arejado, lençóis de seda delicada, lavados e perfumados com o aroma cítrico da sua preferência. Uma fina cobertura de açúcar, cuidadosamente dispersa, é semeada sobre o colchão. É aí que vem a fase mais difícil. Treinei durante meses na minha própria cama, até conseguir estender o lençol sem afastar o açúcar. Depois, é alisar o tecido, fino, macio, tão delicado que quase parece não existir.

Ao fim de um mês, a velha já ouve vozes, grita quando range uma porta e treme quando leva a colher à boca. Já não controla o que como, com quem saio ou o que visto, mas ainda não chega. Os comprimidos «para bem dormir» foram desaparecendo cada vez mais depressa e, a pedido da senhora, deixo-lhe uma caixa cheia na mesa de cabeceira, acompanhada de chá de camomila, adoçado com mel.

A noite passada, limpou metade da caixa, e esta manhã custou a acordar.

Vou fazer-lhe a cama de lavado.

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.