Chocolate

de Ana Rita Garcia

 

O chocolate traz-me à memória a abundância de tempos mais simples. Que luxo era poder dispensar dinheiro em guloseimas das quais, na verdade, não precisava. Depois de tudo, o dinheiro perdeu o valor e já nem recebo senhas de alimentação. Sou obrigada a saquear dispensas alheias para poder subsistir. Sim: roubar para comer. Não me orgulho… Mas, pelo menos, escolho apenas entrar em casas marcadas pela Protecção Civil. Aquelas em que se lê: «zero sobreviventes». Os mortos não precisam de comer, e eu sim. Eu ainda não estou morta.

Entrei sorrateira nesta casa que cheira a pó e a humidade para tentar a minha sorte. Arrisco contaminar-me, porém a fome corrói-me por dentro. Para meu consolo, estes desgraçados tinham os armários cheios quando o vírus os levou. 

Encho a mochila com os enlatados e, na última prateleira, encontro o meu tesouro: uma barra de chocolate. Não me contenho e encho a boca com a iguaria. Suspiro. Sorrio. Gargalho… E, agora, choro com a boca ainda cheia de chocolate. Como é que chegámos a isto? Cega na minha lamentação, dou um pontapé no caixote do lixo, e o ruído propaga-se pela casa. Estremeço. 

Ouço grunhidos vindos de um dos quartos e pernas mortas a arrastarem-se. Parece que esgotei a minha sorte. 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Foi a ver o mar, na margem sul do Tejo, que cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. A economia nacional obrigou-a, em 2013, a procurar outro país para poder exercer a sua profissão. Trabalhou dez anos como arquiteta em Paris, antes de se mudar para terras escocesas e, no meio destas andanças, compreendeu que, ao ler e escrever na língua de Camões, se sente mais perto de Portugal.