Cinzento

de Marisa Fontinha

 

Quando ela se levantou, viu que ainda tinha a pedra na mão. Tinha dormido com ela.

Era uma pedra achatada, com um formato oval quase perfeito e com a cor cinzenta que vemos em todas as pedras. Parecia falsa, até. Olhávamos para ela e algo nos dizia que tinha sido imaginada ou criada, que não tinha nascido na natureza.

Era a primeira vez que dormia com ela. A pedra costumava ficar na mesa branca junto à porta de casa — mesmo ao lado das chaves. Tinha aparecido há nove dias.

Na primeira vez, meteu-a no bolso para a deitar na rua. Não sabia bem como tinha aparecido, mas não era ali o seu lugar. A pedra, no entanto, não saiu do bolso; pelo menos, não nesse dia. Quando chegou a casa e se descalçou, sentiu-a ainda no mesmo sítio. Deixou-a novamente no móvel para repetir o processo no dia seguinte — mas, desta vez, para fazê-lo bem.

De manhã, com a pedra no bolso, resolveu ir pelo parque. Era o trajeto mais longo e não precisava de ir a um parque para se desfazer da pedra, qualquer canteiro serviria. Mas porque não?

O homem estava sentado num dos bancos. Estava de costas para ela e de olhos postos no jornal. Depois, estava no chão, ainda de costas, com ela sentada por cima. A pedra subia e descia, tingida de vermelho.

No dia seguinte, a pedra estava no mesmo sítio, na mesa de entrada, tão cinzenta como sempre. Quando a colocou no bolso, porém, pensou em escolher um novo caminho para o trabalho, aquela rua onde um par de homens remodelava uma casa. Porque não?

 

SOBRE A AUTORA

Marisa Fontinha

Marisa Fontinha nasceu em Vila Franca de Xira em 1985 e, como boa filha dos anos 80, cresceu a ler os Arrepios de R. L. Stine e de olhos colados na The Twilight Zone.

Escondia revistas de banda desenhada dentro dos livros da escola e começou, depois, a escrever as suas próprias aventuras do Tio Patinhas. Cresceu para continuar a escrever e hoje ajuda marcas a comunicar no digital. Como o amor pela ficção nunca desapareceu, gosta de ler livros e falar sobre eles no Oh No! Books!

Tem uma predileção especial por ler e escrever histórias que nos inquietam.