Com Estes Dois que a Terra Há-de Comer

de João Ventura

 

Eu odiava o velho mais as suas histórias.

Para convencer o ouvinte, dizia sempre, apontando para os olhos: «eu vi, com estes dois que a terra há-de comer!».

Azul-claros, os olhos, de uma cor que me fazia arrepios.

Naquele dia, fomos à pesca. Na lagoa, entrámos no bote, e remei até ele me mandar parar.

Lancei a âncora. O velho sentou-se à proa e ficou calmamente segurando a cana, à espera de que o peixe picasse.

Com toda a força, dei-lhe com o remo na cabeça. Caiu redondo.

Tirei-lhe os olhos e guardei-os numa caixinha. Icei a âncora, enrolei a corda ao pescoço do velho e atirei-o, mais a âncora, borda fora. Afundou rapidamente.

Nunca pensei que o município mandasse dragar a lagoa… Encontraram o corpo, fui acusado de homicídio, estou a aguardar julgamento… Mas a terra deve estar a comer os olhos que enterrei ao canto do quintal.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE O AUTOR

João Ventura

Gosta de escrever microcontos, mas às vezes saem-lhe estórias um pouco maiores… O que tem escrito está na Web e em algumas antologias…
O seu terreno preferido é a área do fantástico, mas não se preocupa muito com rótulos.
É um crente na Fantástica Trindade: Borges, Cortázar e Calvino.
Na Editorial Divergência, publicou em 2018 a coletânea de contos Tudo Isto Existe.
Tem um blogue, Das palavras o espaço (http://fromwords.blogspot.com), onde pode ser lido parte do que tem escrito ao longo dos anos.