Consoada

de Rafaela Lacerda

 

— Porque é que não consigo abrir os olhos? — aflige-se ele. O que é que me está a prender? Onde é que estou?

Empenha o rosto no movimento, nada mexe. Tenta levantar a mão para constranger as pálpebras, mas o esforço é vão. A mão não mexe. Nenhum dos dedos. Talvez se consiga levantar. Não. A respiração acelera, não compreende o que se passa, apenas que não se passa nada. A aflição agarra-o com a mesma força daquilo que lhe prende os movimentos. Está preso, só pode ser. Mas onde? Em quê? Agita-se, tenta soltar-se. Uma película rígida cola-se-lhe a cada centímetro do corpo. Uma mortalha? Um sarcófago? Não consegue mexer o corpo, não consegue abrir os olhos, mal consegue respirar. A película abafa-lhe o peito, comprime-lhe o tórax, exaure-lhe as forças. Debate-se na aflição da imobilidade, na claustrofobia cega que o invade. Não vê, não respira, não mexe um músculo. A armadura que o confina não permite maleabilidade, de tão rígida. Sente-se envolto num bloco de cimento que secou no exacto momento em que expirou, no exacto momento em que os olhos fecharam. E não mais os consegue abrir, porque as pestanas não rompem o cimento, e não mais consegue inspirar, porque o ar não atravessa a argamassa petrificada.

Tantas perguntas, tanta dificuldade em encontrar as respostas. Tenta amainar o pensamento, compreender o que está a suceder, analisar a situação. De súbito, percebe que os ouvidos não estão submersos. Ao fundo, uma repetição maquinal de instrumentos que não distingue. Um apito regular, um metrónomo electrónico que lhe marca a cadência da respiração bruxuleante. Eis um vozear, uma esperança. 

— Socorro — grita. — Tirem-me daqui, socorro. 

Ninguém. Ninguém em seu auxílio. 

— Porque é que não me ouvem? Porque é que não respondem? Tirem-me daqui. Socorro. Estou preso no… 

Pára. Está preso onde? Como dizer onde está, como explicar de onde o podem tirar se nem ele sabe? Aguça o ouvido para as vozes. Aos poucos, vai distinguindo os timbres. 

— Duas mulheres — conclui. — Tirem-me daqui. 

A conversa, porém, continua na mesma cadência. 

— Porque é que não me ouvem? 

Percebe então que o pensamento acabado de discorrer tem o mesmo volume do seu grito. Também não consegue pedir ajuda. Porquê? 

— Socorro. 

Ninguém o acode. As vozes das mulheres tornam-se tão nítidas como a dificuldade em respirar. 

— Mãe? — duvida ao distinguir uma delas. — Mãe — chama com veemência quando a perplexidade o consente. — Mãe, estou aqui. Não me ouves? Tira-me daqui. Não me consigo mexer, não consigo respirar. Ajuda-me.

As mulheres continuam o diálogo surdino. A mãe continua a explicação.

— No ano passado, era especial. Era o primeiro Natal em que ele tinha a casa dele, desde que foi estudar para lá. E eu ia passar lá o Natal com ele. Só os dois, como foi a vida toda. Só que eu fiquei doente. Nada de especial, uma daquelas gripes de chacha que aparecem sempre no Inverno, mas estava cheia de febre e de dores no corpo, parecia que tinha levado uma tareia, e então decidimos que eu não ia, vinha ele a casa, como todos os anos. Ele não queria deixar-me conduzir assim. Não é muito longe, uma horita de caminho, mas ele insistiu. E eu acabei por aceitar. À noite, já estava bem melhor, podia ter ido sem problemas, mas já tínhamos combinado, e ele estava a caminho, com mais três colegas do trabalho que também moram para estes lados. Ainda me telefonou a dizer que não se via nada, que havia um grande nevoeiro na Nacional, que iam demorar a chegar, mas já estavam perto, aqui ao lado. E, de repente, um barulho… Deixei de o ouvir. Percebi depois que foi um acidente, bateram num camião e morreram. Todos. Todos, menos ele. Ficou todo espatifado, mas não morreu. Trouxeram-no para o hospital. E quem é que estava de banco? Eu. Recebi o meu filho naquele estado, sem saber que era o meu filho. Só quando o vi. Tinha lesões irreparáveis na C1, na C5, na C6 e na C7, tinha um pulmão perfurado e uma perna cortada. Nunca mais ia andar, nunca mais se ia mexer, nunca mais ia ser o meu filho, o meu bebé. Percebi logo que ele nunca mais ia sair de uma cama de hospital, de um bloco de cuidados intensivos, nunca mais ia respirar sozinho… Não aguentei. Sou médica, mas ele é meu filho. E não tive coragem de o ver assim, parecia um monstro, um… Pensei acabar com tudo logo ali, mas começou o alarido à minha volta, e eu lembrei-me do meu juramento, e de um outro que fiz ainda ele andava dentro da minha barriga. Não tive coragem. Fugi dali. Tranquei-me em casa, no quarto dele. Passei a consoada no escuro, debaixo do edredão. Cheirava a ele. Não era o cheiro da carne aberta que eu queria recordar. Era o cheirinho do meu bebé. Faz hoje um ano, exactamente um ano, daqui a uns minutos. Noite de Natal, consoada. Por isso, tem de ser hoje. 

— A doutora tem a certeza? — pergunta a outra voz. 

— Tenho, enfermeira. Isto não é vida, isto não é o meu menino. Ele nunca vai sair daqui. Pelo menos, vou dar-lhe alguma dignidade. 

— Compreendo, doutora, vou deixá-la sozinha. 

— Obrigada.

— Mãe, o que é que vais fazer? Estou aqui, não me ouves? Não faças isso. Sou eu, o teu filho. Mãe, por favor. Como é que não me ouves? O que é que vais fazer? Socorro, enfermeira — clama, quando o pânico o invade. — Ela vai matar-me. Não faças isso. Mãe.

— Feliz Natal, meu amor. 

E, no instante em que desliga a máquina, os olhos do filho abrem. Olham-na com uma mágoa dilacerante.

— Não — grita a mãe.

Linha contínua. Som contínuo. Silêncio. Contínuo.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Rafaela Lacerda

Nasceu em Lisboa, em 1984. Escreve regularmente teatro, romance e conto. Encenou Box, nos Lisbon Players, e Há dias em que te amo, outros em que não sei o que fazer contigo, no Teatro Rápido, ambas de sua autoria. A peça A noite mais longa do ano foi publicada em 2018, numa coletânea resultante da terceira edição do laboratório de escrita para teatro do Teatro Nacional D. Maria II. Em 2023, publicou «Duas Xícaras» na Revista Contos de Samsara, n.º 10 — Maçã. Criou o blogue Avulso. Bióloga de formação, trabalha como investigadora no Instituto Ricardo Jorge. É mãe do Fausto.

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