Coração que Não Sente

de Nuno Gonçalves

Sinto-lhes o medo que despejaram pelo chão. Sinto-o na ponta da bengala que me guia, sem hesitação, até à minha cadeira. Sinto o cheiro ocre que lhes emana da pele e ouço o súbito suster das respirações quando entro. Sei que tremem e que se encolhem uns contra os outros, pois também eu estive naquele lugar há tantos anos. Também eu fui retirado das mãos dos meus pais. Não que eles se tivessem incomodado com isso. Seria menos uma boca para alimentar.

No início, amaldiçoei os homens que me raptaram. Era uma criança inocente e ignorante e demorei a compreender a bênção que recebera quando me levaram para outra cidade, quando me mostraram a saída para a vida de pobreza em que tivera o azar de nascer. Mas eu rendia pouco. Voltava de bolsos meio vazios, sem ganhar para o pão bolorento com que me alimentavam. Isto até um deles ter a ideia que me haveria de tornar o pedinte de maior sucesso na cidade. Cegar-me. Esvaziaram-me as órbitas e lançaram-me em busca da compaixão dos turistas.

Nas trevas que me ofereceram, fui pintando um novo mundo. Os cheiros envolviam-me e coloriam as formas que a bengala ia desenhando. Os odores das especiarias do mercado, dos esgotos a céu aberto e dos cães de pelo molhado entrançavam-se para me mostrarem que a vida prosseguia para lá da escuridão. Os ouvidos apuraram-se de forma que eu reconhecesse os passos inseguros de um turista a dois quarteirões de distância. Assim, consigo perceber que no chão à minha frente se sentam sete crianças. Duas raparigas e cinco rapazes. Todos sujos, rotos, amedrontados, como ratos de esgoto caçados pelo rabo.

Chamo o primeiro. Aponto ao centro da sua testa e rosno:

— Tu. Vem cá.

Ele hesita e demora a levantar-se, mas não preciso de repetir. Mantenho apenas o dedo apontado até sentir que ele se aproxima.

— Senta-te na minha perna.

Tornei-me forte. A vida fez-me forte. Tive de perceber que deveria tornar-me rápido, esperto e rijo como um tronco. Assim fiz. Cresci para me respeitarem, para que outros me seguissem e pudéssemos criar, rua a rua, beco a beco, um império cujos tentáculos se perdem nas ramificações desta cidade.

O meu nome é conhecido por todos, mas poucos se atrevem a pronunciá-lo. Os que o fazem sussurram-no com lábios trémulos e cabeça curvada.

O rapaz geme. Cinjo-lhe o corpo com o braço esquerdo e seguro-lhe as duas mãos. Continua a tremer. Como é magro. Sinto-lhe os ossos sob a pele queimada. Há quanto tempo não comerá? Há quanto tempo não provará água limpa?

Na mão direita, seguro a colher. Faço tudo num único movimento, rápido e preciso. Afio a colher todos os dias. Ela entra-lhe sob a pálpebra superior, corta os tecidos até chegar ao nervo e prossegue até estar cá fora, triunfante, trazendo o globo ocular do rapaz.

Ele nem grita, mas, quando percebe que me aproximo do outro olho, começa a esbracejar e a tentar libertar-se. Em vão.

Acabo por ter de forçar um pouco mais para lhe retirar o olho esquerdo e o trabalho é menos limpo. O sangue escorre-lhe com as lágrimas e vem cair-me nas mãos. Solto-o.

Esfrego as mãos nas minhas órbitas vazias e as imagens da vida daquela criança preenchem-me o cérebro. Só pobreza, miséria. Uma existência rastejante que poderá agora elevar-se a algo mais.

Contorce-se no chão. Não me agradece.

Chamo o próximo.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).