Corpo Estranho

De Pedro Ramalho

 

— Booom dia! — diz a mão direita, incapaz de conter o entusiasmo. 

— Acordaste antes de mim, mesmo tendo-te deitado mais tarde — reclama, rezingona, a mão esquerda. — Ele esquece-se sempre de que eu existo.

— Menos barulho, vocês as duas!  Hoje, vai ser um dia e tanto, por isso, mãos à obra! — ralham, em uníssono, as pernas. — Pulmões, estão prontos? 

— Eles estão quietinhos, não sei o que é que se passa… — atira o fígado, alarmado.

— E o coração também… Rápido, avisem o cérebro! — gritam de forma articulada os braços, tentando quebrar a flacidez. 

— Ele foi-se… — responde, de forma demorada e com visível dificuldade, a língua. 

— Mas é o nosso aniversário… O dia que íamos ter pela frente ia deixá-lo novamente feliz — lamentava a mão direita, até a língua lhe cortar a palavra e sussurrar num último esforço: 

— Também… era… o aniversário… dela…

E ficou só o silêncio.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Pedro Ramalho

Pedro Ramalho (lê-se Pêdru RRamálhu) é um fulano cujo nascimento foi celebrado com comemorações por todos os continentes, mas também por revoluções menos amigáveis do que as declarações de acidente e os lesados do BES. Como consequência, o Vaticano soltou fumo branco para impedir uma revolução, forçando-os a eleger um novo papa (o terceiro esse ano).

Respeita todos os animais, menos no trânsito. Gosta de desfolhar livros e de palavras começadas pela letra «o». O seu animal espiritual é um pinguim sem bico.

Vive os seus dias entre Sintra e Oeiras, comparando frequentemente Isaltino Morais ao algodão. 

Escreve até adormecer.