Creio em Deus-Pai

de Liliana Duarte Pereira

 

Tia, ouço-a a dizer o meu nome completo e a rezar em voz baixa.
As suas preces saem enroladas na rapidez do desespero.

«Deus te desencante quem te encantou
Deus te desinveje quem te invejou
Deus te desenleie quem te enleou
Deus te desamarre quem te amarrou.»

Tia, estou atrás de si com a mão pousada no seu ombro.
Bocejei infindáveis vezes, até o maxilar me doer.
Os meus olhos arranhados pediam socorro, como se dentro deles estivesse areia fina da praia.

«Deus te tire o mau-olhado que no teu corpo entrou, assim como o Sol nasce na terra e se põe no mar, que todos os teus males ao mar vão parar. Em louvor de São Pedro e São Cosme, de onde eles vieram, que para lá tornem.»

Tia, estou ajoelhada consigo.
As dores de cabeça eram dilacerantes. Tinha a sensação de que um tubo metálico me entrava pelo ouvido e trespassava o crânio.
As náuseas embrulhavam-me as entranhas, impedindo o acesso a água e comida.

«Órfão três vezes; órfão se foi mal que te fizeram ou mal que te rogaram ou mal que te deitaram. Se foi por bruxas ou bruxos. Em louvor de São Pedro e São Cosme, de onde eles vieram, que para lá tornem.»

Tia, entrelaço os meus braços em si.
Os meus ossos aflitos pela falta de espaço esticaram-se até romper a pele.
Os vómitos traziam até cima ninhos entrançados de cabelo.
Nunca mais dormi.

«Santa Madalena Virgem, Santa Isabel de São João Batista, como estas palavras são ditas, confirmadas na verdade de que este cobrante mais não lavre. Deus olhe, Deus olhe, Deus olhe, para quem tão mal olhou. Se foi pela cabeça, em louvor de Santa Teresa; se foi pelas vistas, em louvor de Santa Luzia; se foi pelos braços, em louvor de Santa Anastácio; se foi pelos pés, em louvor de São José. Deus queira que para saúde seja.»

Tia, as suas lágrimas lavam os meus pés despidos, que segura com firmeza.
Adoeci. Definhei.
Pode soltar-me.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.