Crisma

de Ricardo Alfaia

Os vestidos e fatos elegantes dos crismandos brilhavam ao sol de uma manhã de verão e eram enriquecidos por sorrisos envaidecidos e delicados, enquanto as harmoniosas badaladas dos sinos já chamavam pelos novos soldados de Cristo. Orgulhosos pais, madrinhas e padrinhos acompanharam, em passo lento e pausado, os jovens crentes para dentro de uma igreja adornada e fresca. Era um edifício de oração típico desta região campesina, com a particularidade de ter uma galeria-dupla vis-à-vis com o altar. No primeiro piso, encontravam-se um excecional órgão de vinte registos, objeto brioso na comunidade, e o afinado coro feminino. No segundo, simples bancos de madeira escurecida pelo tempo, que acolhiam os mais tardios. Ocuparam-se os lugares e, aos olhos de santos e anjos cercados de ornamentos dourados, o rito começou.

Um canto abriu o procedimento, seguindo-se a apresentação do sacerdote enviado pelo bispo. É este que fará as interrogações eclesiásticas e abençoará, com o Santo Óleo do Crisma e em nome do sagrado Espírito Santo, os nossos bem-vestidos protagonistas. Proclamou-se o Evangelho e seguiu-se a liturgia até se introduzirem os puros inocentes, pedindo-lhes que permanecessem de pé para o ato principal. Assim o fizeram.

O presbítero aproximou-se da primeira criança, uma menina loira com uma fita azul no cabelo, e perguntou:

«Renunciais a Satanás e a todas as suas obras e seduções?»

Nesse momento, o órgão trovejou sons assustadores e disparou labaredas colossais pelos tubos. As chamas incineraram imediatamente as pessoas sentadas na segunda galeria. O calor infernal fez o metal derreter, e as senhoras, que ainda há pouco entoavam cânticos angélicos, agora ardiam entre gritos de desespero. O terror alastrou-se pela igreja. Berros alimentavam o pavor já existente. Eram segundos infinitos de sofrimento. O sacerdote olhava estarrecido para esta cena apocalíptica e só o deixou de fazer ao sentir quatro dedos a entranharem-se no pescoço. Lentamente, os dedos diabólicos rasgaram a pele e a carne do queixo e saíram pela boca, ficando a língua espetada nas unhas. Segurando-lhe o maxilar sangrento e puxando-o para baixo, olhos nos olhos, a menina de cabelos loiros e fita azul no cabelo disse:

«Não!»

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Alfaia

1969 (Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa) > Évora > Lisboa > Évora > Nuremberga > Ingolstadt > Weichering > Santa Cruz.

Empregado de mesa > cozinheiro > condutor > barman > casamento > assistente de fotografia publicitária > filho > fotógrafo > gerente de restauração > designer gráfico > filho > filha > web designer > autor > cofundador da Fábrica do Terror.

 

«O Homem planeia, e Deus ri.»